Sociedade
civil acusa Hélio Costa de “tirar debate do ar”
Avaliação é que grande mídia construiu a falsa polêmica de que a questão central é a adoção ou não de padrões internacionais. Temas como a democratização dos meios de comunicação, possível com a nova tecnologia, passam ao largo dos acertos entre governo e empresas. Por Jonas Valente, para a Agência Carta Maior, 11/10/2005 A TV brasileira vai mudar. Ela não será mais transmitida por ondas radioelétricas, como é hoje, mas por informação convertida na forma de bits, como aquelas que são armazenadas nos computadores e trocadas por meio da internet. E este aparente detalhe está fazendo toda a diferença em uma revolução que não irá apenas melhorar a qualidade técnica de aspectos como som e imagem, mas irá gerar toda uma nova forma de relação dos brasileiros para com este meio de comunicação. Apesar de ter grandes dimensões (econômicas, culturais, políticas) para o futuro do País, a discussão sobre a implantação da TV digital no Brasil, conduzida pelo Ministério das Comunicações, está passando ao largo da sociedade e vem privilegiando apenas os interesses das empresas de mídia. É baseado nesta crítica que diversas entidades da sociedade civil da área de comunicação abriram fogo contra o ministro Hélio Costa para disputar os rumos da TV brasileira. A posição crítica foi manifestada por um grupo de entidades da sociedade civil ligadas às discussões da comunicação social por meio da carta “TV digital: um debate que precisa de audiência”. Subscrevem o documento o Congresso Brasileiro de Cinema (CBC), a Articulação Nacional pelo Direito Humano à Comunicação (Cris Brasil), o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), a Associação Brasileira de Canais Comunitários (ABCCOM), a Associação Brasileira de TV Universitária (ABTU) e a Associação Brasileira de ONGs (Abong). Para as organizações, a discussão sobre a implantação da TV digital no Brasil deve ser urgentemente socializada com o conjunto da sociedade, pois as decisões envolvidas neste processo “produzirão forte impacto no modo como assistimos televisão, podem alterar o cenário de concentração dos meios, contribuir para as políticas de inclusão digital e permitir uma apropriação do público sobre o privado”. Há várias possibilidades em jogo. A TV digital pode ser desde apenas um meio com imagem e som melhorados até um meio que permite interatividade do seu grau mínimo (apenas de organizar o conteúdo acessado, como um guia de programação controlável pelo usuário) até suas possibilidades máximas (o telespectador poderia enviar programas de televisão também). A TV digital pode possibilitar uma gama de serviços ampliada, como correio eletrônico, governo eletrônico, informações e transações bancárias, e pode chegar até um estágio em que o acesso ao conteúdo se assemelhe à internet. Para fazer esta discussão, o governo criou o Sistema Brasileiro de TV Digital (SBTVD), estrutura que contém dois grupos interministeriais de gestão e desenvolvimento e um Conselho Consultivo com participação da sociedade. Indústria nacional A carta ataca a falsa polêmica promovida principalmente pela mídia comercial de que as duas possibilidades colocadas hoje são ou adotar um dos padrões tecnológicos disponíveis (norte-americano –ATSC, japonês-ISDB ou europeu-DVB) ou constituir um brasileiro. “Na verdade, as pesquisas em andamento no país revelam que o sistema brasileiro ideal deveria reunir elementos já “consagrados” em outros países e outros que precisam ser desenvolvidos nacionalmente”, assinala o texto. Hoje existem 22 consórcios de pesquisa investigando possibilidades para componentes nacionais da TV digital. No entanto, o ministro Hélio Costa demonstrou pouca disposição de esperar os resultados das pesquisas. Em audiência realizada na Comissão de Educação do Senado no último dia 27, ele afirmou que o ministério irá analisar apenas as pesquisas cujos produtos sejam apresentados até o prazo de 10 de dezembro. A idéia do ministro é escolher um dos padrões e tentar se beneficiar de alguma forma com a “oferta” do mercado brasileiro aos fabricantes de outros países. "Esses três modelos [ATSC, DVB ISDB] são praticamente semelhantes. Com pequenas variações. Então aquele que oferecer melhores condições para que o Brasil participe desse extraordinário mercado da TV Digital mundial, eu acho que deve ser o escolhido", disse Costa na edição de 29 de agosto do jornal Folha de S. Paulo. A lógica de Costa é que são os interesses das TVs os que devem orientar a política do governo. “Eles vão arcar com mais de 80% dos investimentos necessários para o sistema de digitalização da transmissão terrestre de televisão no Brasil”, defendeu o ministro em audiência pública realizada no Senado, em 29 de setembro. Atendendo a estes interesses, Hélio Costa pretende acordar a importação de toda a base tecnológica da TV digital para tentar, em troca, disputar o mercado mundial da produção de conteúdo e aplicativos. Para tal, afirma já ter definido com o ministro Antônio Palocci a redução da alíquota de importação destes produtos durante pouco menos de um ano para que as emissoras possam se qualificar. Para as organizações da sociedade civil, esta postura mostra que não há interesse em promover o desenvolvimento e a indústria nacional, o que deveria ser um dos objetivos da implantação da TV digital no país. Para elas, a opção por privilegiar a produção de várias componentes necessários à TV digital aqui contribuiria para “diminuir nossa dependência externa de produtos de alta tecnologia e criar uma indústria nacional, iniciativas fundamentais para que o país não perpetue sua dependência tecnológica e industrial em relação aos países desenvolvidos”. Além disso, a carta argumenta que somente a tecnologia nacional pode atender as demandas nacionais, que são diferentes das de outros países. O documento cita os EUA, por exemplo, que têm menos carência de usar a TV como instrumento de inclusão digital (pois há um número de computadores conectados à internet muito grande lá), enquanto no Brasil menos de 20% da população possui computador em casa. Qualidade x aumento de canais Outro embate em que os interesses do empresariado de comunicação aparecem de forma explícita é na reorganização da gestão do espectro eletromagnético. Com a TV digital, onde hoje passa um canal poderão passar quatro (se forem no formato SDTV) ou apenas um (se for no formato de alta definição, ou HDTV). Nesta escolha está a disputa histórica entre as emissoras, que defendem e mantêm um modelo concentrado de propriedade dos veículos, e setores da sociedade que defendem a democratização da posse dos meios de comunicação e a entrada de novos atores, principalmente aqueles da sociedade civil que não visam o lucro. O empresariado, e conseqüentemente o ministro, se utilizam de dois argumentos para impedir a abertura do espectro: (1) apesar do alto custo do formato de alta definição (os aparelhos são caros e a população não teria condição de comprá-los em larga escala), é necessário que se produza nele para poder exportar conteúdo para outros países; e (2) a banda que hoje um concessionário possui para transmitir um canal poderia ser usada para transmitir quatro, mas desde que todos sejam do mesmo concessionário (como por exemplo a Globo transmitir sua programação de rede, o SporTV, a Globonews e o Multishow no mesmo espaço onde hoje só passa ela). A carta divulgada pelas entidades da área de comunicação condena tal posição. “Se levarmos em conta que a TV digital irá ocupar (ao final do período de transição) o espaço que vai do canal 7 do VHF ao 69 do UHF, veremos que se torna perfeitamente possível a ampliação dos emissores de programação e, assim, a ampliação significativa dos produtores de conteúdo televisivo. Assim, além dos operadores privados e estatais, também sindicatos, associações, ONGs, movimentos sociais e emissoras geridas coletivamente poderiam ter seus canais”. Segundo o documento, a implantação da TV digital no país tem de ser uma oportunidade de mudar o atual cenário de concentração onde 7 grupos dominam mais de 80% do que é visto e ouvido pela grande maioria da população brasileira (hoje a TV e o rádio chegam a mais de 90% dos lares brasileiros)”, diz o documento. Interatividade As entidades que assinam a carta também manifestam preocupação sobre as decisões acerca das possibilidades de interatividade na TV digital. Com a diminuição do espaço necessário para transmitir e os avanços tecnológicos, será possível adotar um “canal de retorno” que possibilitará aos telespectadores também enviar dados. Esta novidade, no entanto, pode ser usada para diversos fins. Uma possibilidade, defendida pelas emissoras, é que isso apenas aumente a capacidade de geração de lucros, dando ao telespectador formas de comprar serviços adicionais e produtos relacionados aos programas (como o vestido da mocinha da novela). Outra escolha que pode ser tomada é o canal de retorno ser usado para a afirmação da cidadania. “Com o uso da interatividade, por exemplo, a TV pode disponibilizar nas casas dos brasileiros serviços interativos de educação (que respondem às demandas específicas de cada usuário), de governo eletrônico (declaração de imposto de renda, pagamento de taxas, extrato de fundo de garantia, boletim escolar dos filhos etc.), uso de correio eletrônico (cada brasileiro teria uma conta) e, no limite, acesso à toda a internet”, diz a carta. Num cenário futuro, o canal pode permitir até que os telespectadores se transformem em produtores de conteúdo audiovisual. Abertura no processo Por fim, os autores do texto criticam a postura dúbia do governo presente na inflexão patrocinada por Hélio Costa ao ignorar o acúmulo das duas gestões anteriores do ministério e das reflexões em andamento em prol de uma postura de correia de transmissão da posição das empresas de mídia. As entidades reivindicam a abertura do debate para o conjunto da sociedade com audiências e discussões tanto com os setores organizados quanto com o conjunto da população. Isso implica, num primeiro momento, em retomar o caráter de discussão do Conselho Consultivo do SBTVD, que está abandonado e esvaziado pelo ministério, e colocar o espaço de reflexão e definição de volta ali, e não nas reuniões em separado com as emissoras. “Para
que o interesse público prevaleça, a sociedade civil deve,
com urgência, se tornar protagonista dos debates que envolvem a TV
digital, tanto pela valorização do Comitê Consultivo
como pela introdução de mecanismos que possibilitem a participação
da sociedade civil nas principais decisões relativas à digitalização
da televisão brasileira”, finaliza o documento.
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