Em "Sin City", os anjos são sujos e justos
O filme de Robert Rodriguez e Frank Miller é a melhor adaptação do cinema de uma obra em quadrinhos. É um diálogo vitorioso das duas artes. Os anjos vingadores da Cidade dos Pecados estão destinados a cair. Mas não sem levar com eles alguns dos vermes humanos criados pela sociedade capitalista. Por Sérgio Domingues, agosto de 2005
 

Adaptações de história em quadrinhos para o cinema são cada vez mais comuns. Algumas são mais felizes, outras menos. "Sin City" vem sendo citado como um caso a parte. Em primeiro lugar, a produção teve como um de seus diretores o próprio autor da série em quadrinhos que deu origem ao filme. Trata-se de Frank Miller, que lançou sua obra em 1996, com o mesmo nome. Ele faz dupla com Robert Rodriguez na direção do filme. Em segundo lugar, o original já tinha os elementos de um bom filme noir (pronuncia-se nuá). 

Nos filmes noir há um predomínio de cenas noturnas ou ambientes escuros. Por isso, o apelido que ganharam: noir quer dizer escuro ou negro, em francês. Tais filmes fizeram sucesso principalmente nos anos 1940 e 1950. Seus exemplares mais famosos são "O Falcão Maltês" (John Huston - 1941), "Pacto de Sangue" (Billy Wilder - 1944), "O Terceiro Homem" (Carol Reed - 1949) e "A Marca da Maldade" (Orson Welles - 1958), entre outros. Basicamente, essas produções que mostravam o submundo sombrio do crime e da corrupção. Tanto heróis, como vilões, eram cínicos, desiludidos e, geralmente, solitários. As mulheres eram sempre belas e, muitas vezes, fingiam-se de vítimas para dar um golpe. Seduziam com segundas intenções.

Por outro lado, os filmes noir surgiram sob enorme influência de um gênio dos quadrinhos. Trata-se de Will Eisner, cuja criação mais famosa foi Spirit, que tinha um herói muito estranho. Seu nome verdadeiro era Denny Colt e vivia num cemitério. Não tinha superpoderes, nem armas especiais para ajudá-lo. Não era sempre que vencia no final das histórias e vivia levando a pior em suas relações com mulheres belas e perigosas. Um elemento sempre presente em suas aventuras era exatamente a escuridão de seus cenários. Mas, outros elementos visuais também eram revolucionários, como os balões, as letras, os títulos e o que poderíamos chamar de enquadramento. Não é à toa que gênios cinematográficos como Felini e Orson Wells fossem seus fãs.

Portanto, a fiel adaptação da obra de Frank Miller para as telas é como o símbolo do diálogo respeitoso entre as duas artes. Enquanto Eisner influenciou o cinema, Miller parece ter sido influenciado tanto por um, como pelo outro, ao produzir "Sin City". Mas a adaptação fiel da obra do quadrinista é uma homenagem à obra original. A fidelidade é tamanha que até a seqüência de cenas foram mantidas na passagem de uma linguagem para a outra. As próprias falas presentes nos balões da edição impressa são as mesmas que aparecem na versão filmada. Em ambas, a escuridão predomina, realçada por luz forte. 

A recompensa dos vingadores da inocência ou da injustiça é sua própria morte

Sin City quer dizer Cidade dos Pecados. Bem, talvez a mais famosa cidade dos pecados tenha sido Sodoma. Segundo a Bíblia, Deus teria prometido poupar seus pecaminosos habitantes, caso houvesse entre eles, pelo menos, 10 pessoas inocentes. Como essa exigência não foi cumprida, anjos exterminadores destruíram a cidade com enxofre e fogo.

Em Sin City, o policial amargo John Hartigan (Bruce Willis) e o brutamontes Marv (Mickey Rourke) são anjos destruidores que encontraram duas pessoas inocentes pelas quais vale a pena sacrificar a própria vida em meio à sujeira da cidade cruel. Uma delas é a garotinha de 11 anos que Hartigan salva do pedófilo, cujo pai é um senador. A outra, é a mulher que deu ao feioso Marvel sua única noite de amor na vida. Pouco depois, ainda na cama, foi assassinada. 

Hartigan usa sua própria vida para defender a garotinha dos abusos do tarado. Diz que trocar a vida de um velho pela vida de uma garotinha é bastante justo. Marvel abre mão de sua liberdade condicional para vingar a morte da única mulher com quem se deitou em toda a vida "Finalmente encontrei algo pelo qual vale a pena viver", diz ele. E vale a pena viver para matar todos os que possam ter algo a ver com o assassinato da garota. Um terceiro anjo seria Dwight. Mas, este não está sozinho, nem luta por pessoas consideradas inocentes. Trata-se das prostitutas que dominam a "Cidade Baixa" na base das armas e da violência. Um lugar em que nem a polícia age sem pedir licença às profissionais do sexo. Neste caso, o anjo não vinga pessoas frágeis e livres do pecado, mas vítimas da desigualdade de forças. Ao lado delas, Dwight massacra soldados mercenários e assassinos da máfia, que tentam invadir o pedaço e submeter as prostitutas a seus caprichos. No entanto, a vingança não deverá tardar e a seqüência do filme, também não. Portanto, a sorte de Dwight e de suas aliadas parece estar selada. A recompensa que aguarda cada um desses vingadores da inocência ou da injustiça será a própria morte.

Por outro lado, os exterminadores nada têm de angelicais. São literalmente duros de morrer e inclinados a matar cruelmente. Ao receber dúzias de tiros, murros, atropelamentos, torturas, os mocinhos fazem muitas caretas de dor. Mas resistem firmes e partem para cima de seus agressores como bestas selvagens.

Marv, o mais durão deles, por exemplo, precisou receber duas descargas na cadeira elétrica para finalmente morrer. Após a primeira tentativa, sua boca, babando sangue negro, perguntou aos carrascos se "isso era o melhor que podiam fazer". A acusação que pesava sobre Marv e que o condenou à morte era falsa. Mas, sua prisão foi feita depois de haver esmagado o crânio de um cardeal com suas próprias mãos. Antes disso, já havia ralado a cara de um sujeito no chão enquanto dirigia um carro em alta velocidade. Também afogou um outro numa privada e atirou no rosto de um padre num confessionário. Sua obra de maior maldade foi cortar os braços e pernas de um canibal que comia mulheres e oferecer o que sobrou dele ainda vivo para ser comido por um cachorro.

O filme noir na época do neoliberalismo: o preto e o branco, sem meios tons
O personagem de Bruce Willis também era durão. No início do filme, 4 ou 5 balas atingiram seu corpo, mas não foi nada que uma boa estada no hospital não resolvesse. Mais, tarde, Hartigan quase cedeu à tentação de morrer quando lhe deixaram pendurado numa corda pelo pescoço. Teimoso, ele sobreviveu e conseguiu se safar. Foi atrás do responsável pela tentativa de enforcamento. Era o pedófilo amarelo, a quem arrancou os testículos com as próprias mãos e transformou a cabeça em mingau com poderosos socos.

O mais calmo dos heróis de Miller é Dwight Mas, sua crueldade tinha pouco espaço diante da fúria vingativa das prostitutas pistoleiras da "Cidade Velha" de Sin City. Uma delas é Miho, que fatiava e perfurava homens num piscar de olhos. 

Cada uma das vítimas executadas pelos justiceiros (e justiceiras) de Sin City era um verme humano da pior espécie. E, muitos deles, eram poderosos. O pedófilo era filho de um senador, o canibal era protegido de um cardeal que tinha os mesmos hábitos alimentares e o violento e covarde personagem de Benicio Del Toro era um policial. Mas, tudo isso não deve ter impedido que algumas pessoas deixassem a sala de exibição durante o filme. Na verdade, a violência do filme é apenas fiel ao livro em quadrinhos. E esta é uma leitura atualizada da crueldade presente nos primeiros filmes noir. Neles, praticamente todos os personagens são corrompidos. Os que não o são pelo dinheiro, o são pela descrença na dignidade humana. O espectador é sempre surpreendido pela malícia dos personagens. Mesmo, daqueles que pareciam ser os mais inocentes. 

Os especialistas dizem que toda essa amargura do cinema noir é resultado da época. Os filmes foram produzidos durante a 2ª Guerra ou logo depois dela. Foi um momento em que a razão e a sensibilidade humanas pareciam cada vez mais difíceis de serem comprovadas. Afinal, os massacres cometidos nos campos de concentração nazistas foram cometidos em plena Alemanha, berço dos principais filósofos e artistas ocidentais do século 19. E os vencedores da guerra, não se mostraram muito melhores. O mais novo candidato a campeão da liberdade eram os Estados Unidos. E foi seu governo que forneceu uma amostra do apocalipse quando mandou jogar as bombas atômicas em Hiroshima e Nagazaki.

A obra de Frank Miller também surgiu em plena era do desencanto. Depois dos 20 ou 30 anos de prosperidade econômica na Europa e na América do Norte, veio o neoliberalismo. A realidade ficou muito mais dura. Antes, eram a revolução sexual, o Maio de 68 e as promessas de novos caminhos revolucionários na China e em Cuba. Depois, chegaram a Aids, Thatcher, Reagan e a péssima escolha entre o stalinismo reciclado e o "socialismo" fracassado. Um filme noir dessa época não poderia ser menos cruel. Tal crueldade manifesta-se na própria ausência de meios tons no quadrinho e no filme. Os filmes noir clássico eram escuros, mas não havia somente o preto e o branco. Havia o cinza. Na obra de Miller e Rodriguez, há o preto e o branco, fortemente diferenciados. Símbolo de uma época em que é cada vez mais difícil encontrar matizes. Bush não quis cercar o Iraque como os Estados Unidos vêm fazendo há anos com Cuba. Invadiu e está bombardeando e matando. A polícia inglesa não investiga, prende e julga. Executa, como fez com o jovem brasileiro, Jean Charles de Menezes.

Os verdadeiros anjos vingadores, na verdade, são a maioria

No entanto, como em todo bom filme noir, em meio à podridão geral, o herói encontra razões para preservar alguns valores. Na cara feia de Marv ou na expressão derrotada de Hartigan e no rosto apático de Dwight sorrisos se parecem mais com caretas. No entanto, preservam um fio fino e resistente da idéia de justiça. Não esperam recompensas e até se decepcionam. Marv descobre que a mulher generosa que o amou tão rapidamente antes de ser morta era uma prostituta. Ela buscava a proteção que a enorme força física do brutamontes podia lhe dar contra os freqüentes ataques às prostitutas. A garotinha que Hartigan protegeu, cresceu e tornou-se dançarina de boate. Continuou sendo abusada pelos homens. Dwight e a líder das prostitutas da "Cidade Baixa" são apaixonados, mas sabem que estarão juntos "sempre... e nunca". Suas vidas não lhes permitirão mais do que isso.

Esses são os heróis possíveis do mundo em que vivemos? Parece que sim. Mas não no sentido de que somente os feios sujos e malvados saberão reagir. Estes representam o símbolo mais evidente da miséria a que muitos são empurrados pela sociedade em que vivemos. Em duas cenas, o filme mostra que o nome original de Sin City é "Basin City". Basin, pode significar "vaso sanitário", em inglês. Latrina.

Assim como a destruição de Sodoma não eliminou os pecados do mundo, as misérias morais de Sin City não se resumem aos pretensos perdedores sociais. Não atacam apenas os que são vítimas e adeptos das drogas, da prostituição e usam a violência física como forma de relação com seus próximos. A latrina tomou conta da cidade toda e não apenas de sua parte mais desesperada. O cardeal, o senador e seu filho, a polícia. Todos se emporcalham no pecado. Além disso, os anjos exterminadores não vieram de fora, enviados por Deus. Sempre estiveram entre os piores e descobriram, de repente, que, apesar de tudo, ainda são os melhores. Se sentem no direito de justiçar quem os ofende ainda mais do que suas próprias limitações.

Falando mais diretamente, todas essas desgraças se apresentam de modo cada vez mais normal em nossa vida comum. Estamos cada vez mais próximos da latrina geral. É a barbárie da vida urbana alimentada pelo capitalismo que explora e exclui ao mesmo tempo. Mas a reação dos moradores do porão social alimenta sua própria derrota. Eles não estão excluídos como soldados das batalhas que temos que travar contra os gerentes das latrinas urbanas em que vivemos. Mas, os combatentes principais têm que sair das fileiras dos trabalhadores. Aqueles que são massacrados fisicamente e torturados mentalmente. São os operários e as atendentes de tele-marketing. Os motoristas de ônibus e os balconistas do McDonalds. Os funcionários públicos e os trabalhadores da construção civil. Os vendedores ambulantes e os bancários. Os ladrões, as prostitutas e outros habitantes do subterrâneo vivem das migalhas, menores ou maiores, da exploração capitalista. Os trabalhadores, ao contrário, fabricam o pão. Está com eles a possibilidade de alguma saída.

Os heróis de Frank Miller nunca pensavam duas vezes antes da saltar no escuro. Mas, não voam e acabam pousando no lixo. Os verdadeiros anjos vingadores, na verdade, formam a maioria. Alterando um pouco a música de Ednardo, "são muitos, e podem voar". De vez em quando, descobrem como fazer isso e provocam muito mais estragos entre os de cima que os brutamontes de "Sin City".
 
 


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