O
jornalismo manipulador da Revista VEJA se volta contra escritores
.
.
“Enquanto
o palco acende a luz do soul
A banda
passa e amassa o business-show
Romanos
Encharcados
de poção
Vivemos
de paixão
E alguma
grana”
Nei
Lisboa.
.
Por
Ademir Assunção, julho de 2005
A
revista Veja publicou neste fim de semana (na segunda semana de
julho) uma matéria sobre o Movimento Literatura Urgente,
deflagrado no ano passado, com o propósito de discutir propostas
de políticas públicas para a literatura, e que enviou ao
Ministério da Cultura um manifesto com dez propostas iniciais (disponível
no site www.literatura-urgente.com.br), assinado por 181 escritores de
todo o País. A matéria da Veja é superficial
e maldosa, como era de se esperar.
Mesmo
quem não manja bulhufas de jornalismo pode perceber facilmente que
Veja não faz reportagens. Faz editoriais. Não sai a campo
para recolher informações, cruzar dados e descortinar a realidade
para informar seus leitores. Nada disso: é a realidade que tem que
se encaixar à visão de mundo dos chefões da revista.
Trabalhei
lá durante 11 meses, há 13 anos. Conheço bem o esquema.
Internamente, existem as conhecidas “pensatas”. Quer dizer: o jornalista
faz meia dúzia de entrevistas e levanta algumas informações
para corroborar a “tese” já previamente traçada. Não
adianta o entrevistado discorrer longamente sobre o assunto, fornecer informações,
explicar seus pontos de vista. O que vai prevalecer é o “ponto de
vista” da revista (ops!). É a pensata. E nada vai mudá-la.
Saí
da revista por ter completo desprezo por esse tipo de jornalismo.
No caso
da matéria sobre o Literatura Urgente, a “pensata” é evidente:
“o Movimento quer mamar nas tetas do governo”. Eu pressenti isso pelas
perguntas do “repórter” Jerônimo Teixeira. Poderia ter me
recusado a dar entrevista. Além de ser um direito meu, não
faço a menor questão de “estar” na Veja. Mas, por educação,
conversei longamente duas vezes com o “repórter”. Somadas as duas
conversas, foram mais de 1 hora de explicações e detalhamento
das propostas. Saíram apenas duas aspas (frases) minhas, ambas manipuladas
de tal forma para corroborar a “pensata” da revista. E, claro, foram omitidas
dezenas de informações.
Vamos
a matéria: logo na linha fina, ou olho, o repórter (ou seu
editor) já expressa a opinião da revista: “Era o que faltava:
agora os escritores querem financiamento público.”
Eu pergunto:
Por que “era o que faltava”? O que há de errado em reivindicar políticas
públicas de fomento à literatura (o que a revista chama de
“financiamento público”)?
Eu sei
o que há de errado para a revista. Veja é um panfletão
do capitalismo liberal. Tem uma visão de que o mercado é
quem manda, o mercado é que regula tudo. Tudo, portanto, se resume
a transações comerciais privadas. É assim que eles
enxergam a arte e a cultura, inclusive (e isso está expresso ao
longo da matéria). Mas essa visão capitalista liberal não
impede que Veja, e todo o império Civita, usufrua dos subsídios
ao papel (que toda a grande imprensa brasileira tem). Por quê, Jerônimo?
Eu sei:
quando os subsídios são para o grande capital, ops, aí
é bem-vindo. Como são bem-vindos os R$ 16 milhões
captados na Lei Rouanet para a montagem de O Fantasma da Ópera,
em cartaz no Teatro Abril, através de renúncia fiscal. Portanto:
dinheiro público. R$ 16 milhões para um único espetáculo
teatral, com ingressos de R$ 65 a R$ 200. Ops: aí o capital privado
agradece a mãozinha do governo, não é Jerônimo?
Vamos
em frente: o “repórter” refere-se, em trecho do “editorial”, que
os escritores “reivindicam 30% do Fundo Pró-Leitura (...) para a
‘criação literária’. Calcula-se que o fundo, – continua
o “repórter” – a ser constituído por 1% dos rendimentos de
editoras, distribuidoras e livrarias, movimentaria cerca de 40 milhões
de reais por ano. Ou seja, os escritores estão pedindo 12 milhões”.
Muito
bem: primeiro, o “repórter” Jerônimo omite que no final do
ano passado o Governo Federal promulgou um decreto isentando as editoras
do pagamento de impostos diretos à União, como parte de um
plano para barateamento do livro. Em bom português (como gosta de
escrever o “repórter”): isso significa que os editores deixaram
de pagar 10% de impostos aos cofres públicos. Segundo cálculos
do Ministério da Fazenda, algo em torno de R$ 160 milhões
anuais. Quer dizer: uma forma de subsídio para o setor privado.
Eu falei sobre isso para o “repórter”, mas ele fez questão
de “esquecer” e omitir na matéria.
Em contraposição
a esse subsídio, o Governo propôs que as editoras (e não
livreiros e distribuidores) contribuíssem com 1% do lucro líquido
para a formação do Fundo Pró-Leitura, proposta, aliás,
que não desagradou o setor editorial. E o Movimento Literatura Urgente
reivindicou, através de documento enviado ao Ministério da
Cultura, que 30% fosse utilizado no fomento à criação
literária. De novo eu pergunto: o que há de errado nisso,
Jerônimo?
Eu sei
novamente o que há de errado: com seu jornalismo manipulador, a
revista afirma que os escritores querem levar um troquinho dessa bufunfa.
Mas eu expliquei ao “repórter”, e ele fez questão novamente
de “esquecer”, que o Movimento propõe a criação de
programas públicos para a utilização desse dinheiro,
através de editais públicos, transparentes e democráticos.
Com esses critérios, R$ 12 milhões bem aplicados em literatura
ampliariam vertiginosamente a produção de revistas literárias,
CDs de poesia e áudio ficção, livros, jornadas literárias,
etc etc etc. Veja, Jerônimo: com R$ 4 milhões a menos do que
os R$ 16 milhões aplicados no espetáculo em cartaz no teatro
do seu patrão, milhares de pessoas no Brasil todo seriam atingidos
por lufadas de inteligência, criatividade e qualidade literária.
A visão
canhestra da revista está claramente expressa logo mais a frente,
na matéria do “repórter” Jerônimo. Com um raciocínio
tacanho, ele diz que para escrever um livro “basta lápis e papel”
e que, se tiver leitores em volta, o escritor poderá “vender” muitos
livros e ser “remunerado” com direitos autorais. Para coroar o pensamento,
cita o caso de J. K. Rowling, autora da série Harry Potter, que
atualmente “é mais rica que a rainha da Inglaterra”.
Deus
meu!
Mas vamos
lá: primeiro: talvez para escrever matérias superficiais
e maldosas apenas lápis e papel resolva. Para escrever livros (bons
livros) é preciso mais, Jerônimo. É preciso anos de
pesquisa, de leituras, de vivências, de rascunhos, de tentativas,
de oportunidades. Segundo: quem está falando em ficar rico com literatura?
Por quê essa manipulação odiosa de transformar propostas
sérias de políticas públicas para a literatura em
tentativas de enfiar uma boa gaita no bolso? Diga lá, rapaz?
Mais
a frente, o “repórter” não se contém e qualifica como
“propostas descaradas” a idéia de “bolsas de criação”
e de “intercâmbio com Portugal e países latino-americanos”,
segundo ele, “um trem da alegria letrado”.
Propostas
descaradas? Trem da alegria? Quer dizer que as centenas de programas de
intercâmbio que existem na Europa, Estados Unidos, Ásia etc
são trens da alegria? Quer dizer que programas públicos de
apoio à arte como o National Endowment for Arts, dos Estados
Unidos, deveria ser fechado? E as milhares de bolsas públicas de
mestrado e doutorado no Brasil (inclusive bolsas-sanduíche, com
direito a pesquisa em outros países) deveriam ser extintas?
Por último,
um box da matéria, com o título “Mamata das letras” lista
algumas propostas do Movimento Literatura Urgente, entre elas a concessão
de vinte bolsas anuais, “totalizando uma despesa de 700 mil reais.”
Vamos
esclarecer: a proposta de 20 bolsas anuais sugerem valores de R$ 3 mil
mensais (menos do que a Bolsa Vitae, a qual usamos como referência
de mercado) para autores que “não tenham vínculo empregatício”,
através de edital público, amplamento divulgado, para que
todos saibam. Há alguma indecência nisso? Se há indecência,
então, quer dizer que as milhares de bolsas de mestrado e doutorado
são indecentes?
Vamos
fazer as contas, Jerônimo: com os R$ 16 milhões de dinheiro
público abocanhado pela peça teatral em cartaz no teatro
do seu patrão, daria para conceder 30 bolsas anuais durante 16 anos.
Por que você não publica esses números na sua revista?
Seriam indecentes demais?
É
evidente que com ou sem recursos públicos, bons escritores e boa
literatura vão continuar surgindo. Mas se tivermos políticas
públicas sérias e democráticas, a criação
e circulação literária pode melhorar muito. Ótimos
escritores, que vivem à margem das grandes editoras, teriam mais
possibilidades de encontrar seu público e, ao inverso, o público
teria maior acesso à literatura mais contundente, inquietante e
inconformista, não ficando refém do grande mercado e seus
negócios, movido a Harry Potters e outros bestsellers. Mas isso,
parece, não interessa a grandes impérios da comunicação,
que preferem manter o público atado aos seus cordões manipuladores,
dizendo-lhes semanalmente o que devem pensar, o que devem ler, e como devem
se comportar.
Mas o
que mais me espanta na matéria é que um movimento ainda tão
iniciante, deflagrado em pequenos blogues, já tenha despertado a
“atenção” da gigante Veja, a ponto de dedicar-lhe uma página.
Talvez não seja tão espantoso assim. Talvez o capital privado
na arte e na cultura não queira que os artistas comecem a se informar
melhor dos subsídios que rolam mais ou menos dissimulados por aí.
Talvez eles não queiram que os artistas batalhem para que esses
subsídios sejam melhor utilizados. Talvez eles queiram que os escritores
calem a boca com seus 10% de direitos autorais e se conformem a viver a
espera de um ilusórico "reconhecimento da posteridade".
Nós
estamos interessados no contrário, Jerônimo. Estamos interessados
em trazer as informações à tona, criar consciência
e gerar inconformismo. Afinal, essa é a função de
toda arte decente, não acha?
Deveria
ser também do jornalismo. Fazer circular informação
de verdade, pelo menos, deveria.
PS: Dia
16 de julho estarei debatendo esse assunto na FLAP em São Paulo
(uma feira criada pelos estudantes de direito da USP em contraposição
a FLIP). Vai ser no Teatro dos Sátyros, ali na Praça Roosevelt.
Não é tão grande e confortável como o teatro
do seu patrão, mas é aconchegante e o público não
paga nada. Se quiser expor seus pontos de vista e debater conosco, está
convidado.
Ademir
Assunção é poeta e jornalista, autor dos livros
LSD Nô, Zona Branca e Adorável Criatura Frankenstein
e do cd Rebelião na Zona Fantasma. É um dos editores
da revista Coyote. 12-07-2005)
Núcleo
Piratininga
de Comunicação
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