“A
informação é parte do aparato de guerra”
Correspondente de guerra em diversas ocasiões – as duas últimas no Afeganistão (2001) e no Iraque (2003) - o jornalista português Carlos Fino esteve no final de abril na Escola de Comunicação da UFRJ, na Urca, para falar sobre sua experiência como enviado especial da tevê portuguesa RTP. Em entrevista ao Boletim NPC, comentou sobre o desenvolvimento das coberturas nas últimas investidas bélicas norte-americanas, afirmando que as novas tecnologias mudaram o papel do jornalismo. “Qual que vai ser, ainda é difícil dizer. Mas mudou”. Ele criticou ainda a instantaneidade com que as informações são veiculadas, sem o devido espaço para a reflexão. “Tem que investigar, e para isso é preciso ter tempo, é preciso ter equipes no terreno, é preciso pesquisar. Cada vez há menos investigação e reportagem de fundo nas redações”. E alertou, durante a palestra: “A informação é parte do aparato de guerra. Os poderes mundiais contam com a informação para começar suas próprias guerras”. Por Gustavo Barreto, em colaboração com o jornalista sindical Hélcio Duarte Filho. Qual a importância da informação em um cenário de guerra? Carlos Fino. É a mesma que em um cenário qualquer. É essencial para a nossa vida. Nós não podemos viver sem informação. A tarefa básica do jornalismo é contribuir para a descoberta da verdade. Portanto, a informação é como o sangue que circula nas nossas veias. Não há outra forma de expressar. É necessária à vida e ao desenvolvimento das sociedades. E é tão importante em um cenário de guerra como fora. A guerra a torna mais difícil, porque entre as partes envolvidas há um conflito de interesses. Esse conflito existe normalmente na sociedade civil, mas na guerra isso se acentua. Cada uma das partes procura divulgar só a sua verdade, ou até manipular a verdade e manipular os fatos. Isso torna mais difícil o trabalho do jornalista. Você comentou [durante a palestra] que, em relação às diferenças entre essa guerra [Iraque 2003] e a guerra do Golfo [1991], a questão da tecnologia ajudou na cobertura. Carlos Fino. Isso permitiu a uma estação pequena como a RTP ser, por exemplo, a primeira a transmitir o início da guerra. Se, por um lado, tivemos esse avanço da tecnologia, por outro houve um controle muito maior, principalmente por parte do Pentágono, da informação veiculada, o que talvez tenha contribuído para que os EUA enfrentassem a resistência mundial à guerra e até dificuldades internas. Isso é um marco dessa guerra? Carlos Fino. Esse é um dos marcos. Do ponto de vista da experiência do Vietnã, houve um trauma no poder americano em relação à imprensa. A partir daí, em todos os conflitos – e já na primeira guerra do Golfo – limitaram o acesso dos jornalistas à informação. Foi muito nítido esse controle na primeira guerra do Golfo, onde os jornalistas não estavam presentes. Recebiam as informações numa sala climatizada pelo comandante norte-americano. Isso não deu muito bom resultado, porque ficou evidente a ausência de jornalistas. Esta é uma ‘solução’ que também assegura o controle da informação, mas que, ao mesmo tempo, possibilita mais alguma proximidade do ‘real scene’, do terreno. Então, em relação à primeira guerra do Golfo, acho que houve um progresso até, mas um progresso controlado, com a finalidade de controlar. Mas é preferível estar no terreno do que estar fora do terreno, vendo imagens apresentadas em vídeo filmadas nos aviões, sem conhecimento nenhum do que é estar no terreno. Nada substitui a presença do repórter no terreno. O sentimento, mesmo que seja só para dar uma imagem localizada, é essencial. Nessa medida, esta tomada de posição dos americanos é contraditória. Por um lado, é dado mais acesso, mas um acesso altamente controlado. Mas, mesmo assim, é preferível essa situação do que a outra, em que os jornalistas estão fechados em uma sala climatizada a centenas de quilômetros de distância. É preciso ter a noção das limitações. E mais: é elementar e básico que as estações divulguem as condições em que aquele material está sendo produzido. Faço sempre questão de dizer: esse material foi produzido nessas condições, para não trocar gato por lebre. Porque senão parece que você está com um grande correspondente, com grandes possibilidades, quando na realidade aquilo está pré-determinado e muito limitado. O espectador, ouvinte ou leitor não tem noção das limitações que rodeiam o seu trabalho. Qual a relação entre a decadência da profissão dos jornalistas [comentada durante a palestra] e a independência na construção da informação? Carlos Fino. Eu não se aceito essa relação. Vivemos momentos contraditórios em que muita coisa se questiona, incluindo o futuro da nossa profissão. Para onde ela vai, ainda é uma incógnita. Eu gostaria de acreditar que ela tem futuro, que pode se manter. Agora, os fatos que estão aí é que essa instantaneidade, essa informação em tempo real, essa globalização, a instantaneidade da transmissão das imagens já influenciou, fez tremer a profissão, e mudou a maneira como se faz hoje jornalismo. Isso é natural. Mudam-se as épocas, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, como diria Camões. Mudam-se as tecnologias, mudam-se as épocas históricas, muda o papel do jornalismo. Qual que vai ser, ainda é difícil dizer. Mas mudou, porque não é a mesma coisa transmitir um acontecimento a qual só eu tenho acesso, ou um acontecimento em que, quando eu vou transmitir, todo mundo sabe por já estar na Internet. Há limitações nesse poder que, ao mesmo tempo que é global e instantâneo – ‘vemos’ tudo o que se passa no mundo inteiro, na verdade uma ilusão –, também é imediato, portanto tira o tempo de reflexão e de análise. Depois, porque preenche o tempo e as antenas das grandes empresas, é barato, é fácil, basta ligar o satélite, basta ligar a câmera, tem um cara dizendo qualquer bobagem em frente à câmera que passa tudo. Além disso, tem o problema de não ter que se investir em um trabalho de investigação, que é o verdadeiro sentido do jornalismo. Tem que investigar, e para isso é preciso ter tempo, é preciso ter equipes no terreno, é preciso pesquisar, é preciso pagar hotéis, é preciso pagar as fontes e é isso o que estamos a constatar: cada vez há menos investigação e reportagem de fundo nas redações. O que há mais é este diz-que-diz, falou ali, falou acolá. Há sempre alguma bola no ar, mas ninguém se questiona quem é o dono da bola. Como as coletivas de imprensa. Carlos Fino. Exatamente, as coletivas de imprensa. É uma maneira fácil e simples da televisão global de preencher espaço, preencher horas, que muitas vezes são de vazio. E os próprios correspondentes. Você os manda para certo local onde não está acontecendo nada, como agora no caso do Papa. Não estava acontecendo nada, mas nós tivemos uma cobertura maciça. E não estava acontecendo nada. Só havia especulação sobre quem ia ser ou quem não ia ser eleito. Nessa guerra do Iraque, um aspecto que chamou atenção na mídia impressa e televisiva foi a ausência de um retrospecto sobre a ligação de Saddam Hussein com os EUA. Embora tivessem cadernos diários, pouco se citava – se citavam – esse passado de relações bélicas. Carlos Fino. Nós, como os jornais, recordamos aquilo que nos é favorável para a nossa própria sobrevivência, é uma questão de sobrevivência psicológica. E o que nós não gostamos, ou gostamos menos, é recalcado. É um processo psicológico individual. Provavelmente acontece também com os jornais e com os órgãos de informação. Há coisas que não queremos recordar, o que é inconveniente recordar. O que eu considero é que, até essa maneira fazer informação hoje – que é ligar o botão, pôr um cara em um local qualquer e fala de qualquer coisa – traz mais responsabilidade também para o jornalista. Até porque se tem mais tempo para falar. Se você tiver tempo para falar, quanto mais informação, quando mais fundo você for cavar na História, melhor preparado está para preencher este espaço. Se você não fizer esse trabalho de casa, estará enchendo ar com nada. Então, isso deve ser uma preocupação dos próprios jornalistas: se documentar, investigar para poder falar, quando lhe é dado a palavra. Alguns países trabalham com o termo ‘resistência’, e no Brasil há alguns exemplos. Nos EUA, por exemplo, uma ativista lembra que não existe jornal na grande mídia que trabalhe com esse termo, apenas com ‘insurgência’. Carlos Fino. Se você vir a CNN, eles têm oscilado de acordo com a evolução dos acontecimentos. O título que eles têm usado recentemente é ‘The New Iraq’ [O novo iraque], ao passo que há jornais brasileiros, acho que a Folha [de S. Paulo], que utilizam ‘Iraque sob tutela’. São posicionamentos completamente diferentes. A mídia americana tende a mostrar os aspectos positivos que há e enquadrá-los sob este aspecto genérico de que está a nascer um novo país, um país melhor, o ‘novo’ como uma coisa boa. É claro que os títulos são uma espécie de vestido dos fatos, que orientam num determinado sentido. Essa questão nos conduz à questão da ‘verdade’, porque a verdade é sempre em função de quem relata, de quem fala. Há sempre várias visões com certos interesses. É uma questão filosófica profunda, pode nos levar longe, a uma grande discussão. Como você analisa o uso da imagem atualmente? Carlos Fino. Como tudo, outra vez, há um lado e há outro. Por um lado, algumas imagens podem ser chocantes e esse choque pode ajudar a gerar sentimentos positivos, como a solidariedade, o apoio, comungar a dor do outro. Podem ajudar. Eu vi agora na CNN uma excelente reportagem sobre a situação dos refugiados de Darfur [Sudão]. Fiquei impressionadíssimo, acho que se fez um excelente trabalho. Foi um repórter negro que acompanhou uma família de refugiados durante quinze dias. Eles passavam fome todos os dias. Eram refugiados mas não eram reconhecidos como tal, não lhes era reconhecido o estatuto. Tinha que estar registrados pelas Nações Unidas e os caras que dominavam aqueles campos não queriam inscrevê-los. Havia uma situação de agonia, uma família de sete ou oito pessoas sem comida, passando fome todos os dias. É um exemplo do como se pode contribuir para gerar um sentimento de solidariedade e para exigir que haja intervenção dos governos no sentido de minorar o sofrimento humano. Mas, mais uma vez, os nossos sentimentos são sempre muito complexos. Há também um aspecto ‘voyeurista’ em nós em relação à dor do outro, também existe um aspecto sadomasoquista por vezes. Nós não sentimos a dor do outro. Só sentimos quando nos toca verdadeiramente. Eu tive situações em que, por estar talvez muito endurecido, não me sentia particularmente chocado com certas situações que deveriam em princípio me chocar. E o mesmo
se passa com as imagens. As imagens podem tirar nossa sensibilidade em
vez de sensibilizar. Provavelmente, o que uma civilização
humana tem que fazer é procurar – como em tudo, porque não
há regras fixas – um meio termo entre o que é chocante e
que pode contribuir para curar, salvar e minorar o sofrimento humano, e
o que pode contribuir para nos tornar mais insensíveis em relação
a este mesmo sofrimento.
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