“Um
filme falado” afirma a sabedoria das palavras
A mais
recente obra de Manoel de Oliveira pode parecer uma defesa da civilização
branca e ocidental. Mas é possível chegar à conclusão
oposta. O filme alerta para a necessidade de que a ação seja
orientada pela sabedoria da fala. Seja ela ocidental ou oriental. Por Sérgio
Domingues, maio de 2005
O filme descreve um cruzeiro marítimo de Rosa Maria (Leonor Silveira) e sua filha, a menina Maria Joana (Filipa de Almeida), por cidades do Mar Mediterrâneo. Além de mãe, Rosa também é historiadora. O que possibilita que também o espectador aprenda através dos lugares históricos por que passam as personagens. Além disso, muitas das perguntas da menina Joana são daquelas que nos esquecemos de nos fazer mais vezes: O que são lendas? O que é mito? O que é contemporâneo? O recurso também é uma forma de nos provocar e transmitir o recado do diretor. O problema é que o recado corre o risco de ser mal interpretado. Vejamos porque. O início do filme, por exemplo, passa pelo perigo de ser considerado uma defesa da visão européia de mundo. O nevoeiro que dificulta avistar os monumentos no porto de Lisboa simboliza o desaparecimento no passado das glórias de um Portugal imperial. Muitos podem enxergar na cena a saudade dos antigos navegadores portugueses. Aqueles que mais do que descobrir terras distantes, abriram caminho para os massacres de quem nelas vivia pelos europeus. Essa idéia também está perigosamente combinada com a cena da leitura da placa, em Marselha. Trata-se de uma placa fixada no chão, assinalando a chegada dos gregos à cidade, sete séculos Antes de Cristo. As palavras gravadas afirmam que a vinda dos gregos é a inauguração da própria civilização por aquelas paragens e ponto de partida de sua difusão pela Europa. Parece a tese hoje bastante combatida de que fora e antes da civilização ocidental há um vazio. Na melhor das hipóteses, habitado por bárbaros. Aprendendo com pessoas normais e atravessando idiomas Essa impressão fica mais moderada quando a viagem estende-se até o Egito, o que desloca a viagem para o continente africano, ainda que continue perto do berço mediterrânico da sociedade ocidental. É nesta cena também que Rosa explica a Joana que trabalho escravo foi utilizado na construção das enormes pirâmides. E que, portanto, as maravilhas ali presentes custaram vidas humanas. E que a civilização é assim mesmo, contraditória e cheia de erros. Essa consideração melhora a situação do filme. O passeio por Istambul também ajuda, quando a mãe explica à filha que os muçulmanos têm o direito a sua religião, tal como os cristãos. Outro aspecto do filme é a recuperação da idéia da viagem como momento de conhecer pessoas e outras tradições e não apenas ruínas, monumentos e curiosidades. O fato de ser historiadora permite a Rosa Maria passear pelos lugares turísticos sem precisar integrar os rebanhos de turistas levados por seus guias tagarelas. Mais uma vantagem da professora é seu domínio do inglês e do francês. Isso também lhe dá a chance saber o que ignora com pessoas normais, como o pescador em Marselha, o padre ortodoxo na Grécia e o ator português no Egito. Sem isso, o viajante fica como a pequena Joana, excluída de algumas conversas. Aliás, é como ficaria o público de muitos lugares do mundo se o filme não trouxesse legendas. Até do Brasil. Pode parecer exagero, mas há um razoável distanciamento entre o português de vogais fechadas e consoantes ásperas dos lusitanos e o modo brasileiro de falar. Influenciados pelos indígenas e negros, expandimos as vogais e suavizamos as consoantes. Essa situação dá ao filme de Manoel de Oliveira um sabor diferente para nós, que falamos português do lado de cá do oceano. É o que ocorre, por exemplo, na tradução da frase "o vulcão deitou lava e cinzas", mais literária, pela forma mais técnica presente em "o vulcão expeliu lava...". Esquemas não dão conta da riqueza simbólica das línguas A sucessão de paisagens dá lugar a um debate travado durante um jantar no restaurante do navio. Envolvidos nele estão o comandante da embarcação (John Malkovich) e três senhoras. Uma é italiana (Stefania Sandrelli), outra é grega (Irene Papas) e a terceira é francesa (Catherine Deneuve). O capitão é norte-americano, como calha a quem representa a nação que dirige o mundo. Falando cada um em sua língua natal, eles se entendem perfeitamente. Discutem amor, profissões, sonhos, frustrações etc. A conversa é inteligente e delicada, já que é dominada por mulheres cultas e européias. O momento que nos interessa é aquele em que Maria e sua filha juntam-se ao grupo, convidadas pelo capitão. Desta vez, as mulheres poliglotas admitem não dominar o português. Talvez, a cena tenha como objetivo mostrar a marginalização de Portugal em relação ao restante da Europa. Algo que outro português procurou fazer na literatura. Estamos falando de "A Jangada de Pedra", de José Saramago. De qualquer maneira, Maria se dispõe a falar inglês. Fica clara a atual condição universal do idioma inglês. O incidente leva Helena, a senhora grega, a lamentar a situação de sua língua natal, fazendo uma comparação com o idioma português. Esta última é falada pelos que dominaram o mundo nos séculos 16 e 17, diz ela, tal como os gregos o fizeram na Antiguidade. Mas, a língua lusitana está presente em vários continentes, ao passo que o uso do grego ficou restrito a sua terra de origem. No entanto, Helena consola-se com o fato de que palavras de seu idioma estão presentes em praticamente todas as línguas ocidentais. E lembra alguns exemplos como "telefone" e "quilômetro". Só não lembrou de dizer "cinema" e "televisão". Esta conclusão alegra a todos, mas também serve para nos lembrar que a língua e outras esferas da vida cultural são muito mais ricas e dinâmicas do que querem alguns esquemas. Não há uma relação mecânica entre a economia, por exemplo, e a criação simbólica presente na linguagem. É verdade que o inglês impera porque impera a dominação anglo-americana no planeta há uns 200 anos. No entanto, nos próprios Estados Unidos, já surgiu o "spanglish". Uma mistura entre espanhol e inglês que apareceu devido à enorme presença dos hispânicos em território ianque. O fenômeno já está assustando os conservadores norte-americanos. Um deles chegou até escrever um livro, preocupado com a corrupção dos valores ianques por elementos culturais que lhes seriam estranhos. Trata-se de "Quem Somos: Desafios à Identidade Nacional Americana", de Samuel P. Huntington. É a força-de-trabalho barata e superexplorada vinda dos sul que se vinga de seus exploradores "contaminando" sua poderosa língua. Se a vingança dos debaixo em terras americanas vai ficar apenas na ameaça cultural ainda é uma questão em aberto. A ação sem palavras é bruta e cega Voltando ao filme, seu trágico final corre o perigo de provocar uma leitura equivocada das intenções do diretor. Há o risco de que a destruição do navio apareça como mais uma ação bárbara contra os "civilizados". Uma condenação do fanatismo oriental, incapaz de reconhecer o saber e a moralidade superiores do Ocidente. Por outro lado, durante o debate entre as três senhoras e o capitão, a União Européia também é lamentada por seus próprios defeitos. E nem poderia ser diferente. Nobre e culta como aparenta ser, a Europa foi palco para monstros como Hitler, Mussolini, Franco e Salazar. A tão decantada Grécia foi governada por uma ditadura sanguinária em plena década de 60. Hoje, a união do Velho Continente acontece em um ambiente cheio de racismo e intolerância. Tudo sob os olhos conservadores de Tony Blair e a careta fascista de Berlusconi. Além disso, a cena final do filme também permite uma conclusão crítica às pretensões ocidentais. Trata-se da cara assustada do capitão ao contemplar a explosão. O rosto congelado do norte-americano enquanto passa o letreiro final parece dizer algo para o imperialismo ianque e seus apoiadores na Europa. O capitão olha assustado, como devem fazê-lo muitos norte-americanos e europeus ao observar seus governos colocando em marcha a máquina da guerra. Combatendo aqueles que consideram selvagens, imorais e diabólicos, Bush e aliados tornam o mundo bárbaro à sua própria imagem e semelhança. O contrário
disso é a relação bonita entre mãe e filha
através de palavras cheias de sabedoria, amor e respeito. Elas simbolizam
o que a humanidade pode ser. A bola de fogo que destruiu essa possibilidade
no filme é uma ameaça concreta na vida real. É preciso
agir contra ela. Mas a ação sem palavras é bruta e
cega. Sem o verbo não há ação criativa contra
o silêncio da destruição e do caos. É o que
ensinam textos antigos do Oeste e do Leste.
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