Quanto
vale uma vida?
Por
Gustavo Barreto, 2/4/2005
"Criança, estudante, comerciante, desempregado, funcionário público, marceneiro, pintor, garçom. Durante quase duas horas, numa extensão de 15 quilômetros na noite de anteontem, bandidos mataram 30 pessoas inocentes, nos municípios de Queimados e Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Apenas dois deles tinham antecedentes criminais, mas já nada deviam à Justiça." (O GLOBO, Só pelo terror, 2/4/2005) "Pela manhã, o bar Caíque já não tinha as poças de sangue da noite anterior. O pequeno comércio, montado há cerca de uma ano e meio, não tinha marcas de tiros. Só os vários pares de chinelos espalhados pela rua lembravam o cenário de terror. Um pedreiro, que mora no local há 49 anos, detalhou o pânico dos sobreviventes: - Estava numa barraca perto do bar. Eram oito e 10 da noite. Eu ia para lá, quando vi o Gol prata com o farol alto estacionado no outro lado da rua. Dois homens desceram e, em três minutos, atiraram em todo mundo. Depois, voltaram para o carro e saíram atirando em direção aos outros três bares" (JORNAL DO BRASIL, DOR, 2/4/2005) "Mulher da vítima, uma dona-de-casa de 53 anos, estava num bar a menos de 100 metros do bar Caíque, alvo dos matadores, quando quatro homens desceram de um Gol prata e começaram a atirar. “Estávamos no bar quando o carro chegou e começou o tiroteio. Foi tudo rápido, eles entraram no carro de novo e saíram com as portas abertas. Quando passaram pela gente, atiraram mais”, disse ela. Aos promotores do MP, a vítima disse que viu quando chegou um Gol branco, do qual saiu um homem de 1,70m, moreno, cabelo preto cortado à máquina. Ele se dirigiu ao bar e fez vários disparos. Depois voltou ao carro e foi em direção ao outro bar. O homem fez um único disparo, atingindo-o." (O DIA, O drama dos sobreviventes, 2/4/2005) O norte-americano The New York Times, na edição online, classificou a chacina como “provavelmente o maior banho de sangue da história dessa freqüentemente violenta metrópole”. Pois bem. Trata-se, mesmo, de “provavelmente o maior banho de sangue" do Rio de Janeiro nos últimos tempos. E o que colocam os editores na parte de cima das primeiras páginas dos jornais de grande circulação do Brasil? • Folha de S.Paulo: "João
Paulo 2o piora e perde
a consciência".
Capas dos principais
Façamos um aparte ao ESTADO DO PARANÁ, pela ignorância da foto enorme da vigília no Vaticano, e para o gaúcho ZERO HORA, com foto igualmente desproporcional, a chacina devidamente escondida lá embaixo e o título absolutamente insensível à tragédia carioca: "Todos os olhos para o Vaticano". O jornal carioca O DIA, diga-se, foi o único a colocar a chacina em cima do papa (veja a foto). Mas, mesmo assim, em cima da chacina, pode-se ler "O DIA leva você à Disney" e "Dicionário Enciclopédico ilustrado". A FOLHA também deu destaque um pouco maior que o resto, mas foi longe demais e estampou a foto de três das 30 vítimas. Pra quê? Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil, Diário do Nordeste, O Estado do Paraná e Zero Hora ignoraram a relevância do assunto, fato comprovado pelas imagens pouco significativas da tragédia. Clique
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No
portal UOL, às 18h19, o leitor teve acesso a 46
fotos do papa. Os dez primeiros destaques são sobre a morte
do líder religioso, ao passo que não há NENHUMA referência
à chacina do dia 31. Elas existiam, mas foram substituídas.
Até as 16 horas deste sábado (2/4), a chacina ocupava boa
parte da atenção da mídia. Subitamente, desapareceu.
* * *
No outro canto do mundo, 30 pessoas são mortas sem qualquer explicação plausível, incidente "normal" (só que em menor escala, todos os dias) em meio ao contexto de degradação dos valores humanos no Estado do Rio. Um ato de barbárie gratuito que tira de 30 filhos de Deus a oportunidade que o papa teve: viver muito e bem. Com o agravante de que, por morarem na Baixada Fluminense, não teriam grande expectativa de vida. O sofrimento e a morte antes da hora é o caminho natural daqueles que não têm saúde de qualidade, educação básica e infra-estrutura. Não se trata de algo novo, mas vale citar o penúltimo caso de desprezo pela vida humana e admiração pela fama e pela hierarquia. O mundo teve que engolir da grande imprensa o caso de Theresa Marie "Terri" Schiavo durante longas semanas. Deu voz à direita cristã norte-americana, aquela que defende a "cultura da vida"1 mas, tempos atrás, não hesitou em condenar milhares de iraquianos à morte rápida e/ou à tortura militar, com seu apoio irrestrito à "liberalização" do Iraque. É a cultura da vida política da Família Bush, que acaba com a seguridade social do seu próprio país e com a segurança do resto do mundo. Criança, estudante, comerciante,
desempregado, funcionário público, marceneiro, pintor, garçom
e o papa. Todos estão, neste momento, "tocando o Senhor". A diferença
é de que forma foram tratados por nós antes de chegarem lá.
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