“Porteiro Zé” e “A Diarista”, preconceito e desigualdade

O porteiro das animações do SPTV e a empregada diarista da série da Globo passam raspando pelo preconceito e mostram o quanto a desigualdade no País é grande. Por Sérgio Domingues, março de 2005

Desde janeiro deste ano, o SPTV exibe as animações do “Porteiro Zé”. O programa de notícias da Globo da Grande São Paulo mostra as “trapalhadas” de um porteiro de prédio, que ficaram famosas num site da internete (www.porteiroze.com). O humor passa muito perto do preconceito, ao mostrar um trabalhador com dificuldades sérias de dicção e de compreensão. O personagem não chega a carregar no sotaque, mas a sua origem nordestina é bastante óbvia. Trata-se de um olhar que carrega um certo desprezo em relação ao subordinados, e para o qual devemos ficar atentos. Do pitoresco para o preconceituoso o caminho é curto.

Já a diarista vivida por Claudia Rodriguez tem um perfil mais simpático. É uma batalhadora e vive esculachando as madames e doutores para quem trabalha. O problema é que essa simpatia pode transformar em virtude o que é uma tragédia. O emprego precário, a ocupação sem qualquer estabilidade, de casa em casa, de serviço em serviço, com remuneração incerta.

Ao mesmo tempo, as duas atrações deixam à mostra a enorme desigualdade social da realidade brasileira. O economista John Kenneth Galbraith disse certa vez que “a primeira manifestação de uma sociedade sem classes é o desaparecimento dos criados”. Ou seja, onde há menor desigualdade e maior distribuição da riqueza, há menos subordinação direta e individual. Ao contrário, quando pouca gente tem muito dinheiro e muitas pessoas não têm quase nada, o trabalho serviçal de caráter pessoal se espalha.

Em seu estudo “Sobre a nova condição de agregado social no Brasil: algumas considerações”, de 2004, Marcio Pochmann chama de agregados sociais aqueles que formam um “exército de serviçais associado ao padrão de vida dos ricos e que historicamente se comporta de forma subordinada a eles”.

Segundo o estudo, esse tipo de ocupação foi mais comum até o início do século 20, quando muitos trabalhadores dependiam dos favores dos proprietários para sobreviver. Principalmente, os ex-escravos, expulsos do processo de produção. Com a industrialização, após 1930, esse tipo de relação foi perdendo a força. As ocupações urbanas em fábricas, serviços, comércio fez crescer a importância do trabalho assalariado.

Mas a partir de 1981, o trabalho doméstico familiar voltou a crescer. Empregadas, motoristas, porteiros, babás, diaristas têm respondido pelas ocupações que mais crescem no país. Em 2000, quase 20% do total dos ocupados situavam-se em atividades domésticas, enquanto em 1980 esses trabalhadores representavam 14% do total. 

E a condição de agregado ainda tem conseqüências políticas. Seja como subordinado direto e isolado de seus patrões, seja como pessoa que vive trocando de ocupações, os agregados sociais têm muito pouca chance de resistirem a sua própria exploração. É quase impossível que esse tipo de trabalhador se organize coletivamente. E isso ficará cada vez mais difícil, quanto mais injustas forem as condições sociais.

Claro que tudo isso tem raiz nas medidas democráticas mais básicas, que deixaram de ser adotadas no País. Reforma agrária, educação e habitação dignas, emprego formal e salários decentes são algumas delas. Medidas contra as quais as classes dominantes sempre lutaram, inclusive com uma de suas mais poderosas armas, os grandes meios de comunicação.

Mais uma vez, as atrações da Globo mostram os sintomas de doenças que ela mesma ajudou a criar.
 

_____________________________
Sério Domingues integra a equipe do NPC e escreve para as páginas Mídia Vigiada e Revolutas

Núcleo Piratininga de ComunicaçãoVoltar