A
cultura e a comunicação sob a tirania do mercado
Por Márcia Cristina Pimentel, fevereiro de 2005
Nessa segunda-feira (21/2), embora o país estivesse sofrendo a rebordosa da morte da irmã Dorothy e da eleição de Severino para a câmara federal, a primeira página do jornal carioca 'O Dia' estampava manchete, de meia página, que tratava de mais um capítulo do reality folhetim 'O casamento', protagonizado pelo ator-personagem Ronaldinho. A grande manchete era só fuxico. Envolvia revelações da última 'ex' do protagonista, além de outras considerações sobre a 'atual', feitas pela modelo que representou o papel de 'a barrada no baile'. A tendência à construção de pautas voltadas à subjetividade ao estilo folhetinesco, contudo, não pode ser creditada apenas ao universo popularesco. A revista 'Você S/A' está aí para mostrar que empresários e altos executivos também querem se transformar em personagens do mundo midiático, a fórmula contemporânea de promoção pessoal mais eficaz. Toda essa exposição da vida privada e do mundo subjetivo vem sendo impressionantemente acelerada e aprofundada pelo pensamento neoliberal. Cada vez mais, ela parece contaminar com a estética do folhetim as representações - e não só as de massa - que vêm sendo submetidas à lógica mercadológica, muito embora o atual estágio de organização da sociedade e do mundo não prescinda das informações objetivas. Ainda pelos estatutos do neoliberalismo, muito mais vale a projeção pessoal e sua transformação em personagem folhetinesco do que a tentativa de mudar a realidade. Esta é melhor ficar como está. A modelo que fez o papel de 'a barrada no baile' é mais uma a atestar esta verdade. Apenas dois dias após o enlace matrimonial espetacular de Ronaldinho, o sítio virtual 'Uol' registrava que seu cachê já tinha aumentado em 900%. Isto porque ela foi o pivô da cena que mais rendeu 'babados' e audiência, dentre todas as demais cenas do espetáculo 'O casamento'. Para garantir a sobrevivência da lei e dos seus paradigmas de representação, paparazzi e jornalistas de plantão se postam dia e noite na sombra das personagens 'reais', a fim de continuar a trama dos seus diversos reality folhetins. É necessário mostrar que a ascensão social é possível, desde que o indivíduo aceite a lógica do fetiche, pois ele é uma das maneiras mais eficientes de agregar valor a qualquer mercadoria, inclusive a humana. Pois o que me parece acontecer é que essa lógica educa para a questão de que, hoje, não basta apenas alienar a força de trabalho, mas a si próprio. Os autores da nova tendência folhetinesca, na busca de informações sobre suas personagens-fetiche, arriscam-se, inclusive, a levar socos de namorados raivosos, o que os leva a evocar a liberdade de imprensa, com o irrestrito apoio do veículo para o qual trabalha. Inclusive o das entidades de classe, sempre a defenderem o direito ao trabalho, ainda que o código de ética da categoria seja claro quanto à conduta de "respeitar o direito de privacidade do cidadão". A revista 'Contigo' tem, inclusive, chamado esta busca pelo desvelamento do mundo privado das "celebridades" de "jornalismo investigativo". Jornalistas conhecidos do grande público também dizem que esse tipo de jornalismo é "muito natural", pois é isso "o que o povo quer", é uma "questão de mercado". A crise ética O jornalista e professor Bernardo Kucinski, em seus 'Ensaios sobre o colapso da razão ética', observa a atual tendência de não-aceitação de um código de ética pela categoria jornalística e veículos de comunicação por ele contrariar as regras mercadológicas e os valores do individualismo, tão marcantes na contemporaneidade. Quando se trata da mídia gerar matérias com informações objetivas, há ainda de se lembrar outra questão levantada por Kuncinski; a de que a corrupção se tornou numa "prática sedutora na indústria da comunicação" pelo fato dela combinar "o poder de influenciar politicamente a opinião pública com o poder econômico". Ao final de tudo, o que nos parece efetivamente acontecer, é que a hegemonia do pensamento neoliberal não tem permitido, na práxis, outras manifestações da representação que não sejam as suas, sob a pena de se ser expurgado e massacrado pelo mercado. Isto vale tanto para veículos como para profissionais. Na verdade, a regra da submissão ao mercado, não submete apenas o econômico em função da necessidade de sobrevivência. Submete a própria existência. Tudo e todos ficam condenados à lógica do seu pensamento mercadológico, esvaziando e anulando, inclusive, as individualidades, as expressões e as outras formas de representação. Da mesma maneira que o jornalismo crítico, o teatro também se vê cada vez mais inserido numa camisa de forças, em função da sua fusão com o entretenimento e consumo, esvaziando, de forma preocupante, a essência desta arte. Tal como vem acontecendo com o jornalista, o ator também vem abandonando todos os parâmetros éticos e utópicos, inerentes a qualquer projeto estético e poético, por contingência da sobrevivência e das leis do mercado. Luiz Carlos Moreira, um dos integrantes do movimento paulista 'Arte contra a Barbárie', em um de seus escritos, mostra bem o que vem acontecendo com o ator de teatro. Este, agora, tem que saber dançar, cantar, sapatear, rodopiar, assoviar, fazer drama, tragédia, comédia, enfim, tem que traçar o que vier pela frente para garantir o pagamento do aluguel no mês seguinte. Para sobreviver, ele hoje pode se inserir "num pacote que vem da Broadway, amanhã numa peça que prega a revolução comunista", e depois de amanhã "num comercial do banco Itaú". É um 'artista' sem nenhuma arte, pois não tem projeto estético. Ele é apenas um profissional. No abandono
da essência de seu ofício, os atores, tal como os jornalistas,
parecem se conformar à função do técnico. Transformaram-se
naqueles profissionais que sabem reproduzir o projeto de qualquer engenharia
cultural, de comunicação ou entretenimento, estejam tais
projetos coadunados com a sua visão de mundo, ou não. Os
sujeitos do mercado e aqueles cooptam com suas proposições,
parecem, assim, esvaziar, deteriorar, destruir todos os sonhos e utopias
que não se vinculem ao consumo, à casa própria, à
sobrevivência. Ao impor a sua lógica, impõe junto uma
ditadura expressiva, estética e representacional, ou melhor, transforma
o campo da cultura e da comunicação em mera reprodução
de suas forças. E os indivíduos em meros instrumentos dessa
reprodução.
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