Dono
de jornal quer imprensa livre, mas sem perder comando
Sucesso
da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa, uma parceria entre Unesco e
Associação Nacional dos Jornais, está ameaçado
pela própria concentração dos meios: só seis
grupos concentram a posse de mais da metade da circulação
diária de notícias impressas no país. Por Bia Barbosa,
da Agência Carta Maior, fevereiro de 2005
SÃO PAULO. A Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa, uma parceria da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) no Brasil e da ANJ (Associação Nacional dos Jornais), foi lançada oficialmente na noite da última segunda-feira (14), em São Paulo. Seus objetivos são a promoção da troca de informações a respeito da liberdade de imprensa no Brasil, o acompanhamento das ameaças contra essa liberdade e a manutenção de contatos com entidades similares no país e no exterior, além do apoio a ações contra a impunidade nos casos de crimes praticados contra profissionais no exercício da profissão e veículos de comunicação do país. A rede também se propõe a oferecer informações sobre a situação da liberdade de imprensa no Brasil e emitir alertas quanto a eventuais ações que restrinjam seu exercício. Na visão da Unesco, a questão da liberdade de imprensa é um elemento essencial para a construção de uma sociedade realmente democrática e inclusiva, assim como a independência, o pluralismo e a diversidade dos meios de comunicação. Em seu discurso de lançamento da rede, o representante da Unesco no Brasil fez questão que ressaltar, no entanto, que essa liberdade precisa estar acompanhada por graus crescentes de democratização do acesso à informação, sem os quais seguiremos perpetuando a desigualdade social já existente – desta vez entre os que têm e os que não têm informação. “A liberdade de imprensa não é elemento suficiente neste processo. Uma educação de qualidade para todos – o que inclui a formação do hábito de leitura crítica – e a inclusão digital são processos que contribuirão para democratizar o acesso à informação”, declarou Jorge Werthein. “Essa democratização só acontecerá com meios de comunicação democráticos, que promovam o acesso aos excluídos. Portanto, quando defendemos a liberdade de imprensa, defendemos a democratização dos meios de comunicação”, disse Werthein à Agência Carta Maior. Ele acredita que toda a sociedade tem o direito a um fluxo de informações que expresse abertamente o leque de opiniões existentes, sem que sejam silenciadas idéias e opiniões que possam enriquecer o debate sobre temas controvertidos. É deste princípio, portanto, que parte a Unesco ao criar a Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa. Não parece, no entanto, ser o mesmo que levou a ANJ a promover tal iniciativa. Entre seus mais de 130 associados, lá estão os jornais de maior circulação no país, pertencentes aos grandes grupos que detêm o monopólio da comunicação Brasil. Segundo dados da própria Associação, apenas seis grupos empresariais concentram a propriedade de mais da metade da circulação diária de notícias impressas no país. Sozinhos, estes veículos respondem por cerca de 55,46% de toda produção diária dos jornais impressos. Além de controlarem o que a população lê diariamente, esses jornais se inserem num contexto de “sinergia” baseado na propriedade cruzada dos veículos de mídia – um modelo proibido, inclusive, nos Estados Unidos. O caso mais conhecido é o do sistema Globo de Comunicações. Além dos jornais O Globo, Extra e Diário de São Paulo, a Globo é proprietária de uma editora, de 113 emissoras entre geradoras e afiliadas – que cobrem 99,84% do território nacional – de redes de rádio AM e FM, de uma agência de notícias, provedor de internet e de TV a cabo, que detém 70% do mercado. Mas não se trata de um caso isolado. A empresa Folha da Manhã S/A, responsável pela Folha de S. Paulo, é dona do UOL, o maior provedor de Internet da América Latina. O grupo Estado, além do jornal O Estado de S. Paulo, tem no seu portfólio o Jornal da Tarde, a Rádio Eldorado e a Agência Estado. A Editora JB S/A, além da Gazeta Mercantil, imprime o Jornal do Brasil. Recentemente estabeleceu uma parceria operacional com o grupo O Dia, através do Consórcio Mídia Impressa. A companhia Brasileira de Mídia é proprietária da Forbes Brasil e da agência de notícias econômicas Investnews. Democratizar o acesso à informação passaria, portanto, por quebrar tamanha concentração de mídia. Para a ANJ, no entanto, esses dois aspectos não estão necessariamente relacionados. Ao ser questionado sobre como lidar com a liberdade de imprensa num país marcado pelo monopólio da mídia, o jurista Manuel Alceu Affonso Ferreira, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo, palestrante convidado do evento desta segunda, respondeu: “Precisaria que você me explicitasse melhor o que é democratização dos meios de comunicação. Significa o quê isso?”, perguntou ele, que se orgulha de dizer que há 40 anos advoga em favor das empresas de comunicação do Brasil. O ato falho cometido pelo presidente da ANJ, Nelson Sirotsky, ao “confundir” a expressão “liberdade de imprensa” com “liberdade de empresa” em seu discurso nesta segunda está, portanto, mais do que justificado. Sirotsky é também o presidente do grupo RBS, responsável pela edição dos jornais Zero Hora e Diário Gaúcho, que transmite a programação da Rede Globo em toda a região Sul – cobrindo 99,7% dos domicílios do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina – e é proprietário de mais seis jornais diários, duas redes com mais de vinte emissoras de rádio afiliadas, um provedor de internet e um agência de notícias na internet. O exercício da cidadania Os princípios da ANJ ditam, segundo afirmação do próprio Sirotsky, que a cidadania é uma palavra-chave no jornalismo. “Defendemos um jornalismo cada vez mais vinculado aos interesses objetivos do cidadão, um jornalismo cívico, que hoje já parece ser uma tendência da imprensa brasileira. Esse jornalismo quer informar os cidadãos dos seus direitos e deveres, fiscalizar as ações dos administradores públicos e tudo aquilo que afeta a comunidade. É aberto às demandas da sociedade e permanentemente preocupado em buscar total sintonia com sua realidade”, declarou, reforçando que a rede recém-lançada terá como filosofia de trabalho a defesa do direito da sociedade de ser informada e exercer plenamente a sua cidadania. Estranha-se, portanto, que no lançamento de uma rede em defesa da liberdade de imprensa, o conceito de controle público, social, da mídia, não tenha sido abordado. Questionados mais uma vez sobre este assunto pela reportagem da Agência Carta Maior, os palestrantes partiram para o ataque. “Controle público tem um nome bonito, mas na fase histórica em que estamos, há um apelo ao aparelhamento disso. O melhor controle é o do leitor e, se houver necessidade, do Poder Judiciário”, disse o desembargador Cláudio Baldino Maciel, ex-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, que apóia a iniciativa da Unesco e da ANJ. “O que significa controle público”, perguntou mais uma vez Affonso Ferreira. “Controle público significa, por exemplo, subordinar o Estado de S. Paulo a entidades da sociedade civil? Qual o objetivo disso, impedir que as redes se alarguem? Significa interferência na liberdade das redações? Há 40 anos eu defendo empresas de jornalismo e sei que quem menos dita regra nas redações é o dono do jornal. Eu me assusto com isso. O que queria o projeto do Conselho Federal de Jornalismo era algo parecido”, concluiu. O polêmico projeto do CFJ, apresentado ao governo pela Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e encaminhado pelo executivo ao Congresso no ano passado, foi bombardeado pela grande mídia, avessa a qualquer tipo de regulamentação de suas ações, que usou o fantasma da censura do período da ditadura militar para colocar a sociedade contra o projeto. Um estudo realizado por José Carlos O. Torves sob a perspectiva da agenda-setting concluiu que os principais meios de comunicação do país foram parciais e procuraram influenciar a opinião pública brasileira a ter um posicionamento contrário a criação do CFJ. Realizada entre os dias 4 de agosto de 2003 e 4 de setembro de 2004 – os trinta dias que sucederam o anúncio de que o projeto seria encaminhado ao Congresso – a pesquisa mostrou que, sem exceção, os veículos analisados consideraram a proposta de criação do CFJ um atentado à democracia, indícios de autoritarismo estatal. Além de insistirem que o projeto era do governo federal e que se somava a uma série de outras iniciativas autoritárias “como a Ancinav”, foram explícitos no desequilíbrio de espaço para o debate das posições favoráveis e contrárias ao projeto. A revista Veja, por exemplo, na edição de 18/8/04, na reportagem "O Fantasma do Autoritarismo", entrevistou 31 personalidades, 30 delas eram contrárias ao CFJ e apenas uma favorável. A Folha de S. Paulo publicou editoriais, colunas e artigos contrários ao CFJ diariamente. Nesse período, publicou uma carta do então secretário de Imprensa da Presidência, Ricardo Kotscho, no dia 10 de agosto, e uma entrevista com o vice-presidente da Fenaj, Fred Ghedini no dia seguinte. A Rede Globo, além de editoriais muito críticos no Jornal Nacional e no Jornal da Globo, preferiu entrevistar os jornalistas Alberto Dines e Ricardo Noblat, ambos contrários ao Conselho, no Programa do Jô. O jornal do SBT, durante dez dias, condenou o projeto. A opinião pública, manipulada, portanto, foi levada a ter um posicionamento contrário ao CFJ, associando a idéia do Conselho à censura, à falta de liberdade de expressão e ao desejo de controle do governo sobre a imprensa. O código de ética da ANJ estabelece que os jornais brasileiros devem assegurar o acesso de seus leitores às diferentes versões dos fatos e às diversas tendências de opinião da sociedade. Segundo a Associação, a Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa tem a função de “promover o diálogo e oferecer os meios para que outros percebam como a mídia encara seu papel na sociedade e, ao mesmo tempo, abre um canal para que a mídia tenha acesso a opiniões que os outros possam emitir sobre seu desempenho”. De onde vem, então, a decisão pública da ANJ de se posicionar contra o CFJ? “A ANJ assumiu no ano passado uma postura vigorosa contra a criação do Conselho Federal de Jornalismo, uma iniciativa equivocada do governo e que o Congresso, muito oportunamente, teve a sabedoria de arquivar”, disse Sirotsky. Vem, talvez, da autodeclaração de defensora dos interesses públicos que a grande mídia brasileira promove, deixando claro, no entanto, que pretende se manter bem longe deste público quando se trata de determinar limites para sua atuação. “A ANJ acompanha com apreensão o grande número de projetos que tramitam no congresso relativos à liberdade de imprensa, determinando em que condições ou pressupostos ela deve ser exercida. No fundo, são projetos que consideram esta liberdade como um princípio relativo, que depende de determinadas circunstâncias ou condições. Nada mais falso ou equivocado”, completou o presidente da ANJ. Para quem a liberdade de imprensa deve prevalecer sobre as demais liberdades – incluindo aí o direito à privacidade – não admira a mais recente bandeira da ANJ levantada por Nelson Sirotsky: a que condena a “indústria do dano moral” que, de acordo com suas palavras, busca impor multas absurdas às empresas e jornalistas considerados culpados em processos relacionados a matérias publicadas ou divulgadas pelos meios de comunicação. “Não podemos aceitar que, a título de reparar pessoas que se julgam ofendidas, os meios de comunicação acabem, na prática, sofrendo um novo tipo de censura. Só em um ambiente de completa liberdade, sem constrangimentos de ordem comercial, política ou ideológica é que o jornalismo pode dar sua parcela fundamental de contribuição para a construção da cidadania”, afirmou. Resta saber a que tipo de cidadania a ANJ se refere e quem teria direito a ela. E entender até onde os princípios da Unesco não se chocam com os interesses de sua mais nova parceria. * Com informações do Observatório Brasileiro de Mídia
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