A pena solta. E espírito crítico

Três livros lançados na Europa apontam, com humor, os limites da prática jornalística. Por Gianni Carta, para a Carta Capital, 23 de fevereiro de 2005

Do ângulo da vasta maioria de jornalistas brasileiros, três colegas europeus que recentemente lançaram livros seriam considerados debochados iconoclastas. Detalhe: a exemplo de vários europeus que trabalham em diários, revistas e tevês, nenhum deles tem diploma de jornalista. Isso pode parecer uma aberração no Brasil, onde uma lei reza que, para se exercer a profissão, é imperativa a conclusão do curso universitário de Jornalismo. Mais: nenhum desses colegas se leva a sério pelo fato de ser jornalista. Pelo contrário, dotados de grande senso de humor, e de penas soltíssimas, reconhecem os limites do jornalismo. 

Em My Trade, por exemplo, o escocês Andrew Marr, 45 anos, indaga: “O que é jornalismo?” Resposta: “Qualquer um que fizer jornalismo...”, entre eles “bêbados, disléxicos e algumas das pessoas menos confiáveis e mais perversas da Terra”. Mas há consolo no livro de Marr, consagrado à história do jornalismo britânico. “Tirando o crime organizado, o jornalismo é a mais poderosa e agradável antiprofissão”, emenda.

Outro colega, este o italiano Enzo Biagi, prefere se definir como “um simples cronista”. E “velho”, acrescenta na introdução de seu mais recente livro, L’Italia Domanda (con qualche risposta), uma compilação das respostas publicadas de Biagi às mais variadas questões de seus leitores (droga, divórcio, máfia, política...), de 1988 até 2004. Continua, na introdução, Biagi – modesto, apesar de ter passado 66 dos seus 84 anos nas mais importantes redações da Itália: “Escrevi para diários, semanários e alguns livros”.
 
Autor, na verdade, de cerca de 80 livros, entre eles dezenas de best sellers traduzidos em diversas línguas, Biagi costuma proferir uma frase que seria considerada no mínimo ingênua por colunistas brasileiros – vários isentos de espírito crítico porque demasiado próximos dos donos do poder: “Meus únicos patrões sempre foram meus leitores”. Devido a disputas com patrões, Biagi, que assina uma coluna semanal no diário Il Corriere della Sera, perdeu a direção de vários jornais e transmissões de tevê.

Por sua vez, Gianni Clerici, também ele italiano, é jornalista especializado em tênis do diário La Repubblica. Destaca-se pelo talento de “escriba”, como gosta de ser chamado, e pelo seu elevado senso de humor. Quando registra um golpe falho de algum tenista, ironiza: “Até com minha Olivetti (ele se recusa a usar computador) bato uma direita melhor”. O septuagenário Clerici é autor da bíblia do tênis, 500 Anni di Tennis, publicado em 1974 e traduzido em diversas línguas. No seu tempo “livre” escreve ficção. Erba Rossa, seu último livro, narra a história de um jornalista de tênis que nos anos 60 vai cobrir com um amigo mais jovem, em Praga, o embate entre as equipes italiana e tchecoslovaca, na Copa Davis.

Mais velho e tarimbado, Clerici, o jornalista/narrador, não simpatiza, ao contrário de seu amigo Pigi, com o “socialismo real”. Clerici logo entra num estado de depressão, em Praga. Ele se vê forçado a dividir um quarto de hotel com outros hóspedes, detesta as luzes kitsch das casas noturnas, os telefones grampeados. Garçons laborfóbicos o enervam, a ponto de ele abandonar mesas de restaurantes. Felizmente, entra em cena uma belíssima loira, aparentemente cria da defunta alta sociedade trucidada pelo socialismo. Ludmilla e Pigi se apaixonam...

Erba Rossa é um deleite para quem gosta de ler um jornalista escritor de grande erudição e pena solta. Como dizia Bagehot, citado por Marr em My Trade: “As pessoas lêem aqueles... dispostos a ser eles mesmos, que colocam no papel suas próprias idéias nas suas próprias palavras, e da maneira mais simples possível...” Escrever de forma simples – com voz própria e ritmo – é o que fazem Clerici, Biagi e Marr (pena que os diretores de redação de jornais brasileiros sejam tão apegados a manuais de estilo). Sobre Clerici ninguém menos que Italo Calvino disse: “Ele é um escritor que resolveu escrever sobre esporte”. A seguinte frase de Clerici justifica a frase de Calvino: “O esporte é uma infantil metáfora da vida”.

No Brasil, ao contrário da Itália e Reino Unido, o jornalista ainda precisa de diploma para exercer a profissão. Biagi, por exemplo, começou a trabalhar aos 18 anos numa redação. Clerici, ex-tenista da equipe italiana da Copa Davis, é, como dizia Calvino, escritor antes de ser jornalista. Marr formou-se em Inglês em Cambridge, Inglaterra, e pouco tempo depois começou a trabalhar numa redação. Tudo que o jornalista precisa, segundo Marr, é ser curioso e saber farejar uma boa história. Claro, uma boa base de gramática é importante. Porém, mesmo dominando a gramática, só se aprende a escrever escrevendo. E é preciso aceitar as inseguranças, sempre de mãos dadas com o jornalismo. Nos momentos de grande turbulência profissional, diz Biagi, o jornalista nunca pode “se vender”.
 
É interessante notar que Clerici, Biagi e Marr tornaram-se jornalistas por acaso. Marr: “Não decidi que queria ser jornalista”, escreve, em My Trade. “Tropecei no jornalismo.” Ainda Marr: “Estava fazendo um Ph.D., lavando pratos, e uma livraria de livros de segunda mão me recusara emprego... Apesar de ter um diploma universitário de alto nível, e de ter lido um monte de livros, comecei a me dar conta de que não sabia fazer nada. Não tinha jeito para cantar, ser ator, contar piadas, para tocar um instrumento musical... chutar ou agarrar uma bola, correr sem logo perder o fôlego, falar uma segunda língua...” Em suma, “jornalismo parecia a única opção”.

Embora continue não se levando a sério, a carreira de Marr tem sido brilhante. Ele começou no diário The Scotsman, foi editor-político da semanal The Economist (“O cérebro dos jornalistas da The Economist é demasiado grande para seus pescoços”), foi editor do excelente diário The Independent, colunista do The Observer. My Trade é seu quarto livro. 

Ser jornalista, apesar do “trabalho duro”, sustenta Marr, tem suas vantagens. Os salários, na Europa, não são ruins – e podem ser muito bons. Em Londres, a média para quem trabalha num diário é de US$ 42 mil ao ano, salário inferior ao de um taxista (por volta de US$ 55 mil). Um especialista em artes ou esportes embolsa anualmente entre US$ 95 mil e US$ 110 mil. Colunista tem salários anuais entre US$ 95 mil e US$ 280 mil. Sem citá-lo, Marr disse que um colunista londrino ganha US$ 950 mil ao ano. Editores de grandes diários ganham entre US$ 500 mil e US$ 1 milhão.

Marr, como Biagi e Clerici, tem espírito crítico apurado. Ao contrário de colegas norte-americanos e de alguns diários e tevês canarinho, que se julgam imparciais, esse jornalista escocês parece entender a fusão da reportagem com opinião. O jornalismo, afinal, está longe de ser uma ciência.

Marr vai além: o repórter, para entender o que escreve, tem de continuar indo à rua. Nesses dias de vertiginosos avanços tecnológicos, o jornalista, cada vez mais, tende a ficar nas redações. Isso porque, devido à acirrada competição entre diversos meios de comunicação, os prazos do jornalista ficam cada vez mais curtos. Mas, como diz Marr, “quanto mais tempo o repórter tiver para observar, pensar, escutar e escrever, mais poder terá sobre a história”. 

Biagi e Clerici concordariam em gênero, número e grau com o colega escocês. A única diferença entre os três é que Biagi escreve com uma caneta, Clerici numa máquina de escrever e Marr num computador.
 

fonte: Carta Capital, 23 de Fevereiro de 2005 - Ano XI - Número 330

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