Liberdade
de imprensa ou de empresa?
Editor do Le Monde fala a juristas em evento paralelo ao Fórum Social Mundial. Por Gustavo Barreto, 24 de janeiro, 2005 Na era da globalização, a liberdade de expressão é um problema central, e não apenas periférico. Essa é a opinião de um dos ícones globais da luta pela igualdade de direitos e pela cidadania, Ignácio Ramonet, que esteve presente no IV Fórum Mundial de Juízes, dia 24, em Porto Alegre. Para o editor do jornal francês Le Monde Diplomatique, os poderes tradicionais dos países democráticos - leis, governo, judiciário, entre outros – podem condenar inocentes e votar leis discriminatórias. “Os meios de comunicação e jornalistas costumavam ter a função de denunciar esses abusos. Era o que se convencionou chamar de quarto poder, na verdade um contra-poder”, afirmou. À medida em que se acelerou a globalização neoliberal, no entanto, essa realidade foi mudando sensivelmente. “Com o avanço de um tipo de capitalismo que deixou de ser fortemente industrial para se tornar financeiro, surgiram fortes enfrentamentos entre o privado e o público, entre o individual e o coletivo”. Concentração tende a aumentar Neste cenário surgiram as empresas globais, novas forças que, por sua natureza mundial, superam inclusive governos. E nisso se insere um dos principais problemas da comunicação atualmente. “As transformações na comunicação de massa foram baseadas numa forte concentração dos meios que, cada vez mais, pertencem a grandes grupos midiáticos. E trata-se de uma concentração contínua”, alerta, citando o caso da News Corp., do empresário Rupert Murdoch. Ramonet afirmou que diversas corporações também estão preocupadas com a Internet, tratando de ocupar mais este espaço mididático – ou o 'quarto meio', como definiu. O francês acredita que houve uma reformulação da organização da comunicação no momento atual. “Antes tínhamos a cultura de massas, com sua lógica capitalista, a comunicação como publicidade e propaganda, e a informação, representada pelas agências e pelo que os jornalistas escreviam. Hoje tudo isso se insere numa única esfera”, argumentou. “Mas há a quarta esfera: a Internet”. Ramonet enxerga o surgimento de novas empresas – os “gigantes midiáticos” - que seriam competentes “produtores de símbolos”, promovendo “distrações de todo o tipo”. Neste quadro estão inseridos os desenhos, a indústria fonográfica e até parques como o da Disney. O jornalista avalia que esta influência se equipara ao que Orson Welles chamou de “superpoder”. Novas prioridades No cenário atual, os diversos meios de comunicação perderam importantes referências para dar lugar à lógica empresarial. “Não há objetivo cívico nem ético. Não há mais aquele sentimento de corrigir a democracia quando fosse preciso. Não desejam ser o quarto poder, nem o contra-poder. Desejam se somar ao poder estabelecido, para aniquilar os poderes dos cidadãos”, lamenta. Para avançar na questão, Ramonet pergunta: como resistir? “Precisamos nos mobilizar, criando uma força cívica cidadã. É o que eu chamo de 'quinto poder'”. Um dos principais exemplos de meios que fazem uma guerra declarada contra o povo, diz ele, ocorreu na Venezuela recentemente. “Diante de uma série de derrotas democráticas, a oposição abriu uma guerra midiática naquele país. Pode-se pensar o que quiser de Chávez, mas está ocorrendo uma clara intenção de manipular as mentes dos cidadãos, numa disputa aberta com o único propósito de manter interesses privados. Os meios de comunicação são os novos cães de guarda da nova ordem mundial estabelecida”. Outro caso exemplar ocorreu na Itália. “É um bom exemplo de alguém que, por possuir os poderes econômico e mididático, conseguiu obter o poder político”, diz ele, se referindo ao atual primeiro-ministro, Silvio Berlusconi, que possui seis emissoras de televisão – três públicas e três privadas. O quadro, de qualquer forma, não é novo. “O jornal 'El Mercúrio' foi decisivo para o golpe de 11 de setembro de 73, que derrubou [Salvador] Allende no Chile. O mesmo ocorreu com os sandinistas nos anos 70 e o jornal 'La Prensa'”. O francês argumenta que a guerra é, na verdade, contra qualquer reforma democrática que modifique as estruturas de poder. “Por trás da fachada midiática global se esconde a idelogia mundial neoliberal”, sustenta. Resistência e coletividade Outro desafio que preenche as reflexões do editor é a função dos jornalistas neste quadro perverso encontrado nas grandes empresas. “Temos que achar meios para que o jornalista trabalhe em função de sua consciência, e não em função da sua empresa ou de seu grupo”. Na visão de Ramonet, é difícil resistir de forma solitária. “Você sempre corre o risco de ser demitido. É importante ir nas organizações da categoria para atuar coletivamente. É importante também esclarecer ao máximo que tipos de distorções são feitos no meio profissional. O ocultamento de informações é uma das formas sutis de fazer isso”. O excesso de informação também preocupa Ramonet. “Há muita coisa envenenada por todo tipo de mentiras e manipulação. É como a alimentação, que costumava ser escassa em alguns países. Com a Revolução Agrícola, a oferta aumentou, mas muitas vezes trazendo consigo contaminação, câncer, enfermidades e até morte. Antes, morríamos de fome. Agora, é muito por conta desta contaminação”, compara. Liberdade de imprensa x liberdade da empresa Ramonet chegou a comparar algumas sociedades “livres” com ditaduras. “Nos governos democráticos, a informação se multiplicou tanto e se tornou tão abundante que já virou o quinto elemento, depois do ar, da água, da terra e do fogo”, diz. “No caso, esta contaminação envenena o espírito e intoxica o cérebro”. Ele defendeu uma espécie de “ecologia da informação”, cujo objetivo seria “limpar a informação da maré negra da mentira”. Considerando as regulamentações no setor de comunicações pouco eficazes, Ramonet denfendeu o Media Watch Global, movimento que incentiva o cidadão a fiscalizar a mídia, de forma que as empresas se tornem mais responsáveis. A figura do ombdusman também não agrada ao jornalista, por considerá-los atualmente muito “institucionalizados”. “Sou menos favorável às leis, porque se cria essa sensação de que estamos perseguindo a liberdade de expressão. De qualquer forma, diversos países democráticos as possuem”, lembrou. Ele considera a recente lei de responsabilidade social na Venezuela “bastante razoável”. E lembrou sobre a situação na Suécia. “Lá, que é uma das melhores democracias do mundo, criou-se uma lei que proíbe a publicidade dirigida às crianças. Elas estão proibidas inclusive de participar dos comerciais”. Ramonet acredita que estas leis servem para proteger os grupos indefesos, que estão mais propensos à manipulação. Responsabilidade e credibilidade Ele criticou os grandes grupos midiáticos, que de uma maneira geral defendem apenas “interesses particulares”. “A 'liberdade de empresa' não pode prevalecer ao direito do cidadão a uma informação rigorosa. (...) Além disso, a liberdade de imprensa deve respeitar as outras liberdades”, observa. Uma possível saída seria a responsabilidade social destes grupos, com a organização de um “controle responsável da sociedade”. Até mesmo os meios audiovisuais, que costumam impactar de forma muito mais forte o público, estão perdendo credibilidade diante da população. “Os telejornais nos apresentam as informações numa concepção dramática, sensacional, mas nunca racional. É tudo muito superficial”. “A imprensa escrita perdeu muito. Jornais tradicionais como The New York Times e Washington Post se prejudicaram muito com a manipulação na guerra do Iraque e com os recentes escândalos de reportagens falsas”, disse. Ele usou como exemplo caso do jornalista Jason Blair e a recente descoberta de que matérias eram inventadas e passavam pelo crivo da redação do New York Times sem o devido rigor jornalístico. “Quando os meios perdem a credibilidade, que é a sua principal arma, perdem a confiança do público”. Ramonet acusou ainda a Fox News de “estar a serviço dos interesses bélicos e dos histéricos da Casa Branca”. O caso mais recente de manipulação grosseira da mídia internacional foi, segundo Ramonet, o silêncio ou a falta de ênfase em relação à divulgação de documento oficial da Casa Branca reconhecendo que o Iraque não possuía armas de destruição em massa. “Não era a informação do dia, nem da semana, mas foi uma das únicas justificativas da guerra que vitimou milhões”. Ele também atribuiu em parte à mídia ao que chamou de “invenção” do suposto líder iraquiano, Ahmed Chalabi, que mostrou “provas” da localização das armas de Saddam Hussein e se disse um “desertor” e, portanto, informante privilegiado. “Ele apareceu com essas falsas provas e a imprensa corria para o Pentágono para verificá-las. Acontece que tinha sido o próprio Pentágono o autor da invenção de Chalabi. Eram duas fontes falsas, uma sustentando a outra”, denunciou. Ramonet lembra que, em relação às recentes torturas cometidas por soldados norte-americanos com a conivência de altos escalões do Exército, foram soldados – e não jornalistas – que denunciaram os abusos. “Vivemos hoje num sistema de insegurança informacional. Não há, depois da campanha de meses sobre as armas de destruição em massa, mais nenhuma garantia para o cidadão”, observa. Outro caso comentado pelo jornalista foi o recente esforço do governo espanhol em atribuir ao grupo ETA o atentado terrorista de 11 de março de 2004. “[O ex-primeiro-ministro José] Aznar telefonou pessoalmente a todos os diretores de redação à época, que então culparam o ETA. É mais ou menos o que acontece numa ditadura. Só que numa ditadura haveria pessoas que teriam resistido”. Mecanismos do mercado Outro alvo das críticas do autor foi a “espetacularização da notícia”, oriunda da concepção mercantilista da informação. “Nesse caso, o que conta é a lei da oferta e demanda, em detrimento da coletividade e da função cívica da comunicação”. O mecanismo observado por Ramonet funciona da seguinte maneira: Em vez de vender espaço aos anunciantes, os jornais estão vendendo cidadãos e mentes às empresas. Para isso, dão prioridade às informações fáceis, que podem ser aceitas pela imensa maioria. Em geral, este tipo de informação sem qualidade é gratuita e, por isso, possuem um custo menor para a empresa. “É a venda da massa aos anunciantes não propriamente do ponto de vista econômico, mas sobretudo psicológico”, resumiu. Ignácio Ramonet, que foi o primeiro pensador a usar o termo “pensamento único” - que para o autor era sinônimo de globalização -, afirmou que as empresas possuem uma única lógica (a do mercado) e uma ideologia (neoliberal). “Fica parecendo que há uma única resposta, que é produzida pelo mercado. Trata-se da mão invisível, que atinge quase todos os setores, como educação, saúde, economia e outros. É preciso colocar um limite”, defende. O enfrentamento fundamental que Ramonet enxerga ocorre entre o mercado e o Estado, o privado e o Público. “Todo cidadão tem o direito
a informações corretas. Trata-se também de um bem
comum público, não se restringe aos jornalistas. Não
pode haver interesses corporativos”. E concluiu: “Que a liberdade de expressão
seja a expressão de uma sociedade democrática”.
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