Reflexões sobre a mídia

Por Marco Aurélio Weissheimer, Agência Carta Maior, novembro de 2004. Em períodos eleitorais, um velho fantasma assola a esquerda: o papel manipulador da mídia. Nas derrotas, a gritaria é grande. Passadas as eleições, tudo volta ao normal e velhos vícios e ilusões sobre a relação com a grande mídia realimentam uma tediosa rotina.
 

Em praticamente todos os períodos pós-eleitorais um velho tema ressurge na agenda de debates e avaliações da esquerda: qual o papel da mídia nas campanhas e nos resultados eleitorais e como enfrentar o seu poder de influenciar a opinião pública? O debate chega a ser tedioso pela falta de conseqüências práticas. Em geral, repetem-se acusações e denúncias sobre o trabalho de manipulação e deformação das informações. No entanto, passado o clima de disputa eleitoral, nada é feito de concreto para construir sistemas alternativos e eficazes de comunicação. Pior do que isso, boa parte dos parlamentares, sindicalistas e ativistas de esquerda permanecem privilegiando o contato com grandes veículos midiáticos, como se isso não tivesse um alto custo. Que custo é este?

Na verdade, ele se manifesta de diversas formas. Uma delas é a ausência de iniciativas concretas para construir um sistema de mídia crítica. A crítica, neste caso, fica enclausurada em pequenos guetos de resistência que, no mais das vezes, acaba falando para si mesma, tentando convencer quem já está convencido de que vale a pena transformar a vida em algo mais do que uma expressão de consumismo conformista. Esse conformismo é uma praga que assola mesmo muitos daqueles que estão na linha de frente dessa luta. Temos aqui um fenômeno político-cultural de raízes mais profundas do que aquelas que são comumente apresentadas. A mera apresentação de discursos em favor de uma mídia crítica não vem acompanhada de gestos concretos e exemplares. 

O exemplo como critério

A exemplaridade que se exige aqui está, entre outras coisas, ligada a um trabalho diário e sistemático de construção de novos e minimamente eficazes canais de comunicação. Todos os anos, assistimos ao nascimento e morte prematura de iniciativas nesta direção. O fechamento do jornal O Pasquim 21 foi uma das mais recentes. Publicações como Caros Amigos, Brasil de Fato e Reportagem sobrevivem a duras penas, com um futuro incerto. Enquanto isso, a tão criticada grande mídia permanece sendo privilegiada, tanto no aspecto da publicidade quanto no estabelecimento de canais especiais de informação, onde, muitas vezes, a fofoca e a intriga são transformadas em categorias de disputa política. Nada disso é novo. A ausência de soluções tampouco. 

A situação é tanto mais grave na medida em que a grande mídia recusa de modo categórico qualquer discussão sobre algum tipo de controle social sobre seu trabalho, alegando que isso seria sinônimo de censura e cerceamento da liberdade de imprensa. A recente polêmica envolvendo a proposta de criação de um Conselho Federal de Jornalismo é apenas mais uma prova disso. As grandes empresas de comunicação, que investem hoje em diversas áreas que não tem nada a ver com comunicação (setor imobiliário, por exemplo), recusam ter seus negócios submetidos a qualquer tipo de controle. Seus veículos acabam se transformando em ferramentas de negócios e a informação torna-se uma moeda de troca. É óbvio, portanto, por que recusam qualquer idéia de controle. 

O mercado das ilusões

Essas razões já seriam mais do que suficientes para fortalecer a idéia de que investir em comunicação é absolutamente estratégico para quem quer, de algum modo, construir alternativas aos sistemas políticos, econômicos e culturais e dominantes. No entanto, na prática, a vida revela-se mais dura e implacável com certas ilusões sobre a ocupação de espaços na grande mídia. E essas ilusões não são um patrimônio exclusivo da esquerda partidária, freqüentando também outros movimentos políticos de esquerda. Em fevereiro de 2004, durante o Encontro Internacional pela Paz a Contra a Guerra, realizado em Porto Alegre, o jornalista e ativista francês Bernard Cassen fez uma dura advertência sobre os riscos da presença destas ilusões entre o movimento altermundista. 

As palavras de Cassen podem se aplicar, sem maiores dificuldades, à esquerda em geral. O diretor do jornal Le Monde Diplomatique lançou, então, uma pergunta para provocar o debate: por que a crítica ao sistema midiático teve um atraso em relação à crítica da globalização neoliberal? A resposta, segundo ele, passa pela constatação de que uma parcela importante de atores desse movimento evita críticas diretas à atuação da mídia por acreditar precisar dela. Na época, a alfinetada dirigia-se diretamente a alguns ativistas franceses, mas também se estendeu para o movimento em geral. Para Cassen, muitas pessoas que querem construir "um outro mundo possível" mantêm relações privilegiadas com jornalistas da grande mídia, desenvolvendo uma espécie de conivência. 

A crítica é pra valer?

O filme é bem conhecido entre nós. As conseqüências também. Na época, Cassen lembrou o óbvio, um exercício sempre recomendado em tempos de esquecimentos estratégicos. Os proprietários dos grandes sistemas midiáticos são empresários transnacionais que, na imensa maioria dos casos, têm negócios diversificados em outros setores para além da mídia. Ou seja, eles estão conectados ao mercado global e são atores centrais do processo de globalização. Enquanto tal, acrescentou o jornalista, esse sistema é um vetor ideológico estratégico da globalização do capital. Qual o corolário desse diagnóstico do ponto de vista da luta política de quem quer mudar esse modelo? A resposta é: se a crítica à globalização é pra valer, a crítica à atuação da mídia também precisa ser a valer. 

O problema, concluiu, é que muita gente não encara essa luta pra valer por temer perder espaço nessa mídia. E os dias vão se passando, com a realimentação permanente de relações privilegiadas com alguns jornalistas da grande mídia que vai sendo generosamente abastecida de informações, fofocas e intrigas. Até que se perca alguma eleição ou luta importante, para que todos se lembrem que essa mídia tem lado e manifesta esse lado, de modo articulado e eficaz, quando há uma disputa política estratégica. Resta, depois, lamentar as derrotas e ficar acusando a mídia de manipulação, como se isso fosse uma grande novidade. A novidade, para muitos desses críticos de ocasião, seria despertar deste torpor, abandonar convenientes ilusões e passar a construir alternativas concretas. 

Caso contrário, seguiremos peregrinando por esse vale midiático de lágrimas, mendigando espaços quando nos convém, bajulando quando preciso, e esperneando quando o óbvio se afirma mais uma vez. Enquanto isso, a grande mídia olha os peregrinos desse vale com alguma comiseração, lança algumas migalhas aos olhos e ouvidos famintos por um pequeno espaço e recomenda: continuem assim! 
 

Marco Aurélio Weissheimer é jornalista da Agência Carta Maior (correio eletrônico: gamarra@hotmail.com). Agência Carta Maior: www.agenciacartamaior.com.br
 

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