Beto Almeida: Uma TV para o Sul

Por Gustavo Barreto, dezembro de 2004

Transmitir todas as revoluções na visão dos movimentos sociais, contribuindo para a construção de laços mais fortes entres os povos latino-americanos. Esta será a função da TV do Sul, idéia lançada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez e explicada pelo jornalista, Beto Almeida, neste sábado (4/12). A palestra fez parte do 10o Curso anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), ocorrido entre os dias 1 e 5 de dezembro de 2004.

“A TV do Sul terá nossos valores”, explicou Almeida, dando a entender que o estágio de desenvolvimento da iniciativa já estaria bastante avançado. O jornalista afirmou que um dos principais eixos desta nova emissora – que será bilíngüe – deve ser o jornalismo, que tratará de mostrar as notícias que não são exibidas pela grande mídia. “As elites já possuem suas tevês. Precisamos da nossa CNN”, sustentou Almeida.

Ele aproveitou para dar uma alfinetada no governo federal: “Que a Globo não mostre, nós já estamos acostumados. Que o Estadão minta, não é novidade. Mas o fato de a Rádiobras não mostrar fatos como a revolução em curso na Venezuela é desrespeitar a Constituição de 88, que fala na necessidade de se incentivar a integração latino-americana”.

Apoios à vista

Ao se aprofundar no tema, Almeida disse que a TV do Sul terá sedes em diversos países e que já conta com o apoio do governo Kirchner (Argentina), do novo governo do Uruguai e o Estado do Paraná (Brasil), entre outros. Questionado sobre o apoio do governo federal, Almeida desconversou, sugerindo que não há grande entusiasmo com a proposta: “Tudo o que sei é que Lula foi comunicado. Ele sabe”.

A TV terá a característica de uma Fundação, o que a permite migrar para outro país caso enfrente turbulências políticas. Ele explica que, apesar de não estarem subordinados a nenhum Estado, a contribuição do governo de Chávez é fundamental para levar a idéia à frente.

Respondendo a críticas sobre uma possível intervenção do presidente venezuelano, Almeida disse: “Não há dúvidas de que foi Chávez quem lançou a idéia, não há porque negar, mas a TV não é estatal. (...) Estamos lidando inclusive com a possibilidade de Chávez sair do poder, pois certamente teríamos dificuldades”. Almeida lembrou que a TV estatal local já oferece programas via satélite, alguns retransmitidos em TVs comunitárias no Brasil.

A revolução transmitida

Mas não apenas de informação viverá a TV do Sul. “Será para mudar mesmo, não pode ter só informação. Nós temos lado”, afirmou Almeida, que atualmente preside a TV Comunitária de Brasília. Ele criticou o consenso unilateral que permeia as tevês comerciais atualmente. “Trata-se de uma destruição em massa da verdade”, diz Almeida, que sustenta que esta deformação causa uma confusão na opinião pública internacional. Almeida denunciou que 85% do fluxo de audiovisual do mundo é norte-americano. “Percebam que nem estrangeiro é. Vem de um único país mesmo”, alerta.

O jornalista afirmou ainda que o quadro no Brasil é mais crítico do que se imagina. “Aqui, 70% das pessoas que assinam a tevê fechada o fazem para ver a tevê aberta, para melhorar o sinal”. Lamentou também a situação em que se encontra nosso país, lutando para dar ao povo acesso a uma tecnologia do século 16 – o hábito da leitura.

História de lutas

Beto Almeida falou sobre
TV Sul; No microfone, Glauco
“Não é que a TV vá substituir os movimentos sociais, mas precisamos transmitir todas as revoluções da América Latina. O povo precisa saber”, disse Almeida, reafirmando a necessidade de se transmitir todos os movimentos de resistência que estão ocorrendo na região, como é o caso dos mineiros na Bolívia e da situação em Cuba.

Almeida comentou diversos aspectos do filme “A revolução não será transmitida”, que conta sobre o golpe midiático ocorrido na Venezuela em 2002. O jornalista lembrou que foram as tevês que renunciaram em nome do presidente eleito. Ele conta de que forma todas as emissoras do país divulgaram que Chávez teria renunciado. A TV estatal, único contraponto existente hoje ao poder da mídia, foi silenciada.

Ao perguntar ao presidente sobre o assunto, um soldado que estava fazendo a guarda de Chávez descobriu ser falsa a informação sobre a renúncia. Esperto, o guarda pediu que Chávez fizesse uma declaração num papel de que não renunciara e pediu para assiná-la. Entregou, então, o papel a sua namorada, que tinha contatos em rádios comunitárias locais. Estas repassaram então a informação para uma TV em Cuba, que conseguiu tornar público o episódio.

A partir daí, o povo venezuelano ficou sabendo pouco a pouco do ocorrido e se mobilizou, se dirigindo à capital e exigindo a volta de Chávez ao poder. Em pouco tempo, diante do protesto da população, a oposição foi obrigada a admitir a mentira. Uma equipe de tevê irlandesa estava dentro do palácio governamental no momento do golpe. Boa parte das filmagens do documentário “A revolução não será transmitida” foi captada por esta equipe. “É um caso sem precedentes na história do jornalismo”, acredita Almeida.

Ele lembrou também o ocorrido durante a guerra de Kosovo, em Belgrado. As tevês locais sustentaram em determinado momento que Milosevic estaria apto a matar cerca de 30 mil pessoas em um estádio local. Uma das tevês iugoslavas fez, então, o óbvio: foi no estádio e acabou por desmentir a denúncia, encontrando o local vazio. Resultado: o sinal desta tevê foi quase que imediatamente cortado e uma semana depois jornalistas da emissora foram bombardeados.

Democracia e comunicação

Almeida lembrou também que a democracia nunca foi tão testada como está sendo neste país. “Chávez passou por oito provas democráticas, entre plebiscitos e eleições. Isto nunca havia acontecido, com governante nenhum”, lembrou.

Ao comentar, a pedido de um participante do Curso NPC, a lei recentemente aprovada no país que trata do audiovisual, Almeida afirmou se tratar de um controle social da mídia. “Para qualquer violação das leis do país, as tevês ficam obrigadas a pagar uma multa”. Almeida lembra que, assim como no Brasil, os canais de TV e Rádio são concessões públicas – conceito que praticamente se perdeu por aqui. O jornalista citou o fato de que, na Venezuela, muitos cidadãos estão começando a divulgar a data de término de algumas concessões, como forma de pressionar tevês e rádios que se acham acima da lei. “A concessão da Rede Globo termina em 2007, por exemplo, mas no Brasil ninguém fica sabendo”.

Ao comentar sobre a crítica de que a medida atenta contra a liberdade de expressão, Almeida deu um quadro dos comentaristas do país. “É uma coisa impressionante. Eles chamam Chávez de macaco, bêbado, louco e até assassino. Apesar disso, nenhum jornalista foi preso nem processado. Como não há liberdade?”, questionou.

Oposição “democrática”

Em 1999, o jornalista se recordou do desmoronamento de uma cidade inteira, quando 25 mil pessoas foram soterradas em apenas 5 minutos. Um bispo local, tentando ligar a fatalidade ao presidente Chávez, chegou a afirmar que a culpa das mortes teria sido da própria população, por apoiarem o presidente. “Lá, a Igreja é a própria oligarquia”, diz Almeida. “Chávez é a cara do povo, mestiço de negro com indígena”.

Almeida lembrou que não são raras as vezes em que as elites planejam atentados terroristas – como o último, que matou um dos procuradores da República que investigava o golpe de Estado da direita, com ajuda do governo norte-americano – para dizer, depois, que o país está mergulhado no caos. “É para dizer que Chávez, que é a vítima, é o grande problema”, disse.

Em reação ao conservadorismo das elites, Almeida lembrou que alguns segmentos da sociedade civil – os populares – chegaram a cogitar a ocupação das tevês privadas, mas o próprio presidente preferiu ir pela via democrática, para não provocar uma reação desnecessária na comunidade internacional.

Almeida lembrou que a revolução em curso na Venezuela é armada, e sustentou que de outra forma não poderia ser. “Pinochet, por exemplo, era o chefe de Estado maior de Salvador Allende”, argumenta. A parceria com o Exército, por conta do perigo permanente de um golpe, é fundamental.

Além disso, um dos principais motivos do sucesso de Chávez à frente da nação bolivariana é a capilaridade dos movimentos sociais, presentes de forma bem estruturada em toda a população pobre.

Ferramentas

Beto Almeida explicou aos participantes do Curso do NPC o que é preciso para pôr a idéia em prática, quando a TV do Sul for colocada no ar. “A TV Comunitária de Brasília já transmite um debate entre Chávez e o povo venezuelano, aos domingos, em que se discutem os problemas do país”, disse. O sinal é capitado via satélite e o equipamento é relativamente barato para as tevês que quiserem reproduzir o material – menos de R$ 1.500, preço irrisório perto dos orçamentos usuais de tevê. O dinheiro diz respeito a um receptor digital de 400BX, uma antena para sintonizar os canais e um técnico para manusear o equipamento.

Almeida falou da limitação de no Brasil haver apenas 12 milhões de TVs com parabólica, mas o jornalista lembrou que o custo destes equipamentos está sendo barateado. Ele considera 12 milhões, atualmente, um número razoável de aparelhos.

Em relação ao conteúdo, Almeida lembrou que boa parte da produção a ser transmitida já está pronta. “São centenas de vídeos que são boicotados pelas grandes emissoras, engavetados pela mídia”. Apesar disso, a TV do Sul não deixará de produzir seu próprio material, com foco no jornalismo. “Isso vai acabar fomentando a produção”, sustenta.

Ação conjunta

Almeida disse que a iniciativa precisará da mobilização de todos os comunicadores e militantes do campo de comunicação. A idéia é exatamente integrar cada vez mais estes comunicadores para fortalecer as ações dos povos latino-americanos. O desenvolvimento da TV do Sul poderá ser acompanhada na página do NPC, em www.piratininga.org.br
 

Núcleo Piratininga de ComunicaçãoVoltar