“É preciso um esforço concentrado na estratégia de contra-hegemonia”, diz coordenador do MST

Por Gustavo Barreto, dezembro de 2004

A elite brasileira elite foi competente em manter as coisas como eram ao colocar o debate sob sua óptica. Construir novos meios de comunicação de massa é, nesse sentido, essencial para se travar a luta contra-hegemônica na sociedade. Foi com este pensamento que o porta-voz do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra em Brasília, João Paulo Rodrigues, fez sua intervenção neste sábado (4/12), no penúltimo dia do 10o Curso anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC).

João Paulo começou, irônico, pelos grandes grupos de comunicação: “Bem, como vocês sabem, nos não temos problema com a imprensa, é aquela tranqüilidade”. Depois se dispôs a falar sobre antecedentes históricos da luta dos trabalhadores. Ele informou que 46% do território nacional cultivável está nas mãos de 1% da população. “Já houve diversas oportunidades para essa elite fazer a reforma agrária nesse país, mas eles nunca aproveitaram”, afirmou, citando três exemplos.

A primeira oportunidade, disse, se deu no período de 1850 – quando, durante o Segundo Reinado, promulgou-se a primeira Lei de Terras – a 1888, oportunidade em que foi promulgada a Lei Áurea, confirmando o desgaste do sistema escravista de trabalho. A segunda foi na Revolução Burguesa de 1930. A terceira, finaliza, na década de 60 com o início da formação de um governo popular.

MST alerta: a elite possui métodos
João Paulo alertou que a elite não age indiscriminadamente. Este trabalho exige métodos, entre os quais a cooptação de lideranças dos movimentos sociais (oferta de cargos e facilidades, entre outras coisas); Repressão, quando “necessário”; Divisão interna dos movimentos sociais e da esquerda; Criminalização dos movimentos sociais por meio de notícias difamatórias; Personificação de seus líderes como forma de torná-los presas fáceis e, assim, começar uma campanha de desmoralização política.

João Paulo seguiu citando momentos históricos importantes, como Canudos – primeira vez que se utilizou da força federal para esmagar um movimento popular – e a Guerra do Contestado, onde foi utilizado um avião para destruir em massa a população.

Antecedentes

Canudos, nome pelo qual ficou conhecida a comunidade de Belo Monte, na Bahia, foi fundada por Antônio Vicente Mendes Maciel, o Antônio Conselheiro, em 1983. Chegou a reunir cerca de 30 mil excluídos. Na localidade havia duas escolas, todos trabalhavam para todos, não havia prostíbulos, nem tavernas, nem bebidas alcoólicas. Em meio a mais de cinco mil casas, construíram-se a Igreja Velha e a Igreja Nova. Destruiu-se o núcleo comunitário após quatro expedições militares, com massacre da população, degola de prisioneiros e envio de mulheres para prostíbulos de Recife. O cadáver de Conselheiro foi desenterrado, sua cabeça cortada e mandada para Salvador.

A Guerra do Contestado assim foi chamada porque ocorreu em território disputado pelos Estados do Paraná e Santa Catarina, entre 1912 e 1916. Sob a liderança dos chamados monges, criaram-se a Irmandade do Quadro Santo e as cidades santas, formadas por sertanejos obrigados a cortar curto o cabelo e proibidos de ter barba, daí o nome de “Pelados”. Nessas cidades santas era forte o sentimento de igualitarismo e acreditava-se que os velhos se tornariam moços. Massacres, incluindo fuzilamentos, prisioneiros queimados vivos, degola e bombardeio de cidades santas por aviões e canhões foram usados pelo governo para destruir o movimento.

Mecanismos de contra-hegemonia

João Paulo afirmou que, para combater os mecanismos hegemônicos das elites, o MST também está em busca de mecanismos. Um dos principais, diz ele, é a comunicação. “Os meios de comunicação fazem um ataque contra os sem-terra que vai na casa de um, todos os dias e todas as noites”.

É daí que surgem expressões para os sem-terra como “baderneiro” e “perigoso para a democracia”, além de acusações de que o movimento tem uma organização corrupta e de que cobra “pedágios” nos assentamentos. Outra afirmação comum é a de que alguns sem-terra possuem casa na cidade. “Se o Bradesco ou a Rede Globo possuem centenas de propriedades rurais, ninguém questiona se eles sabem como arar a terra. Por que alguém de origem camponesa não pode ter propriedade urbana? Nós não temos esse preconceito. Quem dera todo brasileiro tivesse um hectare de terra”, argumenta.

“Um projeto de comunicação não se separa do projeto político e econômico. Não se separa da luta de classe”, argumenta. “O dia em que o Estadão ou a Globo falarem bem do MST, não terá sido a mídia que mudou, e sim o MST”.

Ele citou o caso de edição recente da revista VEJA, que classificou os cinco assassinatos cruéis ocorridos em Minas Gerais como a morte de “mais cinco mártires”. Já a jornalista Cláudia Santiago lembrou o jornal O GLOBO, que deu a entender que a culpa das mortes era da “leniência” [suavidade] do governo com o MST.

Na oportunidade, o próprio fazendeiro local deu um tiro na cabeça, a sangue frio, de três dos cinco sem-terra.

Críticas à atual gestão

João Paulo criticou o governo federal, a quem acusa de não ter produzido nenhuma novidade na política de comunicação. Ele lembra também que a perseguição às rádios comunitárias não só se manteve, como aumentou na atual gestão. “Neste quesito, temos que ser rebeldes. Todas as nossas rádios pegam não só 50 km, e não só 1 km. E eu já deixo avisado: oferecemos nossos assentamentos para esconder rádios ilegais”, sentenciou.

A Associação Mundial de Rádios Comunitárias no Brasil (Amarc) denunciou recentemente que a repressão da Polícia Federal brasileira sobre as rádios comunitárias que funcionam no país tem sido cada vez maior e mais violenta (veja notícia relacionada abaixo). No dia 25 de outubro, por exemplo, foram fechadas outras 15 rádios comunitárias na região de Belo Horizonte, capital mineira. Entre elas, a Rádio Constelação, que há sete anos vem atuando junto à comunidade e é formada em sua totalidade por portadores de necessidades especiais. No ato do fechamento, Roberto Emanuel, cego de nascença, foi algemado e levado preso até a Polícia Federal de Belo Horizonte.

Em relação à reforma agrária, João Paulo pediu para que houvesse uma diferenciação. “Uma coisa é reforma agrária. Outra coisa é essa política de assentamento do governo Lula, que não é reforma”, afirmou, destacando o baixo número de famílias beneficiadas pelos programas de redistribuição de terra do governo. Entre outras manipulações grosseiras da mídia, João Paulo destacou que a mídia “esquece” de informar que o MST não se apropria de nenhuma terra. “Trata-se de um bem do Estado. É um princípio do movimento. O lote não pode, portanto, ser vendido”. João Paulo argumentou que o abandono das propriedades ocorre por conta de uma política agrícola deficiente por parte do Estado.

Personificação e desmoralização

João lembrou que a personificação dos movimentos sociais é uma tentativa dos meios de comunicação de tornarem seus coordenadores presas fáceis. “Faz parte do processo de desmoralização política”, afirma. Para combater esse mecanismo, João Paulo explica que o MST se preocupa em não expor excessivamente seus coordenadores. “Há uma preocupação em revezas os líderes, até para que eles ganhem experiência”.

Outra forma de combater a hegemonia dominante é por meio da educação. João Paulo informou que, entre outras iniciativas, o movimento mantém 60 cursos formais de graduação, em parceria com instituições federais e privadas, além de 60 pessoas estudando medicina em Cuba, dentre eles 15 formados. Há inclusive integrantes do movimento fazendo pós-graduação em diversas áreas de conhecimento. “Isso eles não divulgam”, critica.

O verdadeiro “perigo”

Cidadãos organizados, com formação ideológica e a real consciência da realidade. Este é, na visão de João Paulo, o verdadeiro “perigo” para as elites. Ele disse não se importar com campanhas que vêem como questão central os grandes meios de comunicação. “Eles são importantes, mas não imprescindíveis”, diz. “É preciso construir novos instrumentos de massa, até porque não é bom ficar gastando muito tempo para falar mal deles”.

Uma das saídas é a criação de redes de rádios comunitárias e jornais alternativos. “O programa partidário das elites está no editorial dos jornais. É desse forma que eles se comunicam com sua base social”, aponta. Para João Paulo – que citou o jornal Brasil de Fato como exemplo positivo –, esta comunicação pode estar faltando aos movimentos sociais. Outro exemplo positivo é a RENAP – Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares.

Desobediência civil

João Paulo argumenta que, com as leis atuais – feitas em grande parte pela elite –, será impossível mudar o país. “É vital que façamos uso da desobediência civil, porque senão nunca conseguiremos quebrar essa barreira. É preciso um esforço concentrado nessa estratégia de contra-hegemonia”. João Paulo ressaltou também a importância da linguagem na construção da luta: “É preciso criar uma linguagem com o companheiro que não tem noção do que é hegemonia”.

João Paulo finalizou sua intervenção dizendo que o eixo de reivindicação dos movimentos sociais deve ser a mudança de modelo econômico, para além das brigas setorizadas.
 
 
PRINCIPAIS MÉTODOS DA ELITE
NA DISPUTA DE HEGEMONIA
I
Cooptação de lideranças dos movimentos sociais (oferta de cargos e facilidades, entre outras coisas)
II
Criminalização dos movimentos sociais por meio de notícias difamatórias
III
Personificação de seus líderes como forma de torná-los presas fáceis e, assim, começar uma campanha de desmoralização política
IV
Divisão interna dos movimentos sociais e da esquerda
V
Repressão, quando “necessário”. Exemplo: quando “ameaça a democracia” (eufemismo para “desafia a hegemonia e o poder constituído”)

Fonte: palestras do 10o Curso anual do NPC


FONTES


BIBLIOGRAFIA

  • BRASIL, UMA HISTÓRIA POPULAR, de Rubim Aquino, Lucia Naegeli, Francisco Mendes e Claudius Ceccon; prefácio de João Pedro Stédile. Record, RJ, 2003.


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