"O Aprendiz" ensina como morder-se por dentro

Por Sérgio Domingues, dezembro de 2004. O programa da Record quer nos convencer de que para vencer é preciso ser selvagem. E é verdade. Sob o capitalismo, a própria classe dominante precisa morder-se por dentro para sobreviver.
 

"O Aprendiz" é um "reality show". Algo como o Big Brother, mas dele não participam moças e rapazes atléticos turbinados à base de silicone e alteres. Ao contrário, são pessoas de alto nível de escolaridade, fluentes em pelo menos uma língua estrangeira. O programa estreou em 4 de novembro com um grupo de 16 participantes que competem por um cargo em uma das empresas de Roberto Justus, com salário anual de R$ 250 mil. Justus é publicitário e apresenta o programa. 

Segundo o texto da página do programa na internete, "As tarefas envolvem vários aspectos que os aspirantes a executivo devem dominar: vendas, marketing, promoções, ações beneficentes, negócios imobiliários, finanças, publicidade e gerenciamento de locais, além de arrecadação de fundos, administração de bens e realização de eventos de proporções gigantescas". (www.rederecord.com.br).

Quem assistiu aos episódios, pode confirmar as exigências acima, mas tem que acrescentar uma muito importante. A tal da capacidade de liderança. No caso, capacidade de passar por cima de seus concorrentes. Poderíamos dizer que se trata de um verdadeiro treinamento para sobreviver entre feras selvagens e maliciosas. Mas isso seria injusto para com os animais, que nunca atribuíram caráter material ou moral a suas desavenças.

O programa é a versão brasileira de "The Apprentice", apresentado pelo multimilionário Donald Trump, com grande audiência na televisão norte-americana. A postura de Roberto Justus é mais contida que a de seu similar estrangeiro. Mas, a contenção parece tornar ainda mais assustadora a forma com que mira os candidatos e candidatas ao desemprego. É ele quem decide a cabeça a ser cortada. Sem choro, nem vela. Alguém já comparou sua capacidade de expressão à de Schwarzenegger. Faz sentido para um exterminador de empregos. 

O porrete faz a força

As imagens são muito bem editadas, o ritmo é rápido como convêm às modernas técnicas televisivas e ao espírito de competição feroz do programa. Enquanto as equipes cumprem suas tarefas, trechos de depoimentos dos candidatos são mostrados. Neles, o líder pode ser devidamente criticado, sinalizando a ambição pelo lugar dele. Ou pode ser elogiado, num possível jogo de alianças. Um companheiro ou companheira também pode ser alvo de ataques ou elogios, dependendo da estratégia de cada um. O Big Brother também é uma competição desse tipo, mas ainda há alguma possibilidade de laços afetivos se desenvolverem. Aqui, isso ficou mais difícil.

No único episódio a que assisti, um dos candidatos, Flávio, era claramente favorito à demissão. Mas, Justus acabou não demitindo ninguém. A justificativa foi a saída de uma das integrantes da equipe que Flávio liderou por motivos de saúde. O desfalque aconteceu depois do cumprimento da tarefa, mas teria abalado o grupo. Justus teria sido justo. Circulou a informação de que motivos menos nobres comoveram o empresário. Se demitisse alguém, desequilibraria a competição. Teria que haver uma considerável ginástica para admitir um novo participante depois de iniciada a competição. Também foi dito que Flávio é marido da dona do shopping em que foi realizada uma das provas e que ajuda a patrocinar o programa. 

De qualquer maneira, não é isso que importa. Claro que se forem comprovadas marmeladas, é preciso denunciar e condenar. Mas, o problema não é a lisura das regras do programa. São as próprias regras e seu objetivo. 

Em primeiro lugar, o objetivo é convencer as pessoas de que o mundo lá fora é uma selva. Todos precisamos nos virar, com machadinhas, porretes e outras armas mais modernas, sutis e mortais. Nenhuma confiança para o vizinho, o colega de trabalho, até um parente. São todos concorrentes em potencial. Dane-se a solidariedade de classe, a "união faz a força" etc.

Em segundo lugar, estimular a competição entre os trabalhadores sempre foi uma tática do capitalismo. Mas, na época em que vivemos, há um agravante. O elevado desemprego e a grande informalidade nas relações trabalhistas acentuam esse clima de "seleção natural" entre os trabalhadores. E mesmo quem está empregado, já não trabalha em grandes unidades, com milhares de colegas, como acontecia no tempo das grandes linhas de montagem. Está cada vez mais sozinho e sujeito a que a mira do patrão o encontre.

Aprendendo a exterminar

Em terceiro lugar, o aprendiz aprende o quê? A ser patrão. E o que é ser patrão? É ser o melhor dentre as piores bestas feras da "floresta" do mercado capitalista. É ser, como Justus, um exterminador. E aí está um aspecto interessante do programa.

A elite capitalista se mostra também como vítima de um sistema no qual ocupa a posição dominante. Ser capitalista é uma maravilha do ponto de vista do acesso ao conforto, à informação, à segurança material, ao que de melhor tem a oferecer os avanços da vida moderna. Mas, não é possível baixar a guarda. É preciso fazer como Justus e manter os olhos bem abertos, as garras prontas e o coração duro.

Isso acontece porque de todas as classes dominantes da história humana, a burguesia é a que enfrenta maior concorrência entre seus próprios pares. Como a essência do capitalismo é a concorrência entre os capitalistas, é preciso estar sempre "atento e forte", como diz a música de Caetano. A cenoura do lucro sempre crescente está presa na ponta da vara amarrada às costas eqüinas da burguesia. O lucro ideal nunca chega e a cavalgada enlouquecida continua.

É como disseram Marx e Engels no manifesto comunista: "Tal como o aprendiz de feiticeiro, a burguesia não consegue controlar as potências que pôs em movimento". Este descontrole pode ser visto ainda mais claramente, hoje. São os desastres sociais, como a fome, a miséria e a violência. São as catástrofes ambientais, como a poluição, o aquecimento global, o desmatamento e as grandes cidades impossíveis de serem administradas.

Não é o caso de ter dó dos capitalistas. Mas a crueza com que o programa da Record mostra o que uma pessoa precisa se tornar para vencer na vida sob o capitalismo, é suficiente para deixar claro que a superação do capitalismo é necessária até para quem nele é vitorioso.
 

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