Os
"aspones" deles e os nossos
Por Sergio Domingues, dezembro de 2004 O mais recente programa de
humor da Globo é um insulto aos servidores públicos. Mas,
o combate a esse tipo de atração deve nos lembrar de nossos
próprios erros. Um "aspone" é uma engrenagem do Estado capitalista.
Nos sindicatos e partidos de esquerda, é um câncer.
Uma nova atração da Globo vem causando a ira dos funcionários públicos. Trata-se de "Os Aspones", que estreou em novembro passado. É estrelada por Pedro Paulo Rangel, Selton Mello, Andréa Beltrão, Marisa Orth e Drica Moraes. Todos em ótimas interpretações. Do ponto de vista técnico, a direção de José Alvarenga Jr. também é muito boa, assim como os textos de Alexandre Machado e Fernanda Young. A trama fala de uma repartição pública cujo nome é "Fundo Ministerial de Documentos Obrigatórios", ou FMDO. Mas o lugar teve suas verbas cortadas "há uns dois anos", segundo uma das personagens. E sem ter o que fazer, a repartição teria concentrado suas atividades em uma das principais diversões de desocupados. As letras da sigla transformaram-se, então, em "Falar Mal dos Outros". Na verdade, os alvos dessa atividades seriam cidadãos sem princípios. É o caso do cara que vive seguindo ambulâncias para avançar no trânsito. Gente como ele é chamada ao FMDO para ser torturada com pedidos absurdos de documentos e exigências burocráticas. Nada que não nos aconteça, sem ter seguido qualquer ambulância. A ira dos servidores públicos é justificável. "Aspone" quer dizer "assessor de porcaria nenhuma". É aquele sujeito que ganha bem para fazer muito pouco e, geralmente, o faz de maneira mal feita. A forma como são mostrados os servidores dá a impressão de que isso acontece em todas as repartições. Gente desocupada e incompetente cuidando dos negócios públicos. O problema é que a série se baseia em coisas reais. Não é verdade que todas as repartições e órgãos públicos sejam desse jeito. No entanto, o programa se baseia em um pedaço da realidade muito visível. O fato é que os setores da administração pública mais abandonados são aqueles que atendem diretamente a população. É só ver a situação da rede pública de saúde, educação e previdência. Uma calamidade! Atacando de forma sutil E qual é a origem dessa calamidade? É o fato de que o serviço público no Brasil passou do modelo patrimonialista ao gerencial sem nem mesmo passar pelo perfil burocrático. Explico. Grosso modo, os serviços públicos até a década de 60 eram entendidos como parte do patrimônio das elites. Sua função era servir a elas, inclusive como cabide de empregos. Depois do golpe militar, a ditadura resolveu dar ao setor público maior eficiência e começou a implantar um modelo mais profissional, mais burocrático. Isto é, com procedimentos, regras, regulamentos que evitassem principalmente o uso político-partidário da máquina governamental. Na verdade, isso foi feito tanto para varrer os restos do uso populista da máquina governamental, como para capacitá-la a servir mais adequadamente ao grande capital nacional e estrangeiro. Uma típica modernização conservadora. Mas, essa burocratização nunca foi completa. Ao contrário, o patrimonialismo continuou dominando, devido aos vários fatores econômicos e históricos, e à cultura política do País. Com a chegada ao poder dos liberais da Nova República e dos neoliberais da dinastia dos Fernandos, os esforços foram no sentido de adotar o gerencialismo. Uma escola de administração pública que entende que é preciso flexibilizar procedimentos, priorizar o resultado ao invés do processo, implantar programas de qualidade total, enxugar a máquina promovendo demissões, tratar o cidadão como cliente. Ora, todos vimos os resultados dessa política. Pânico entre os servidores, a oficialização das facilidades nas compras sem licitação, muita aparência e pouca verdade na melhoria do atendimento ao público. Ou seja, nossos serviços públicos são hoje uma mistura desses modelos de gestão. De fato, cada um deles é, e foi, utilizado conforme as necessidades das formas dominação da burguesia. Enquanto isso, as necessidades do povo foram sendo deixadas de lado. O maior problema do programa da Globo é responsabilizar os servidores por tudo isso. Os autores até poderiam responder que ficou claro desde o início que toda a situação foi causada pelo corte de verbas. O problema é que a seqüência de situações engraçadas facilmente faz esquecer esse detalhe. Por outro lado, o programa vai ao ar sexta-feira, em torno das 23:30h. Um horário e dia da semana que o distanciam do grande público e, por isso mesmo, escolhidos pela Globo para fazer suas experiências com novos formatos. Foi o caso de "Os Normais", com Fernanda Torres e Luis Fernando Guimarães. Outro exemplo é "Sexo Frágil", com Bruno Garcia, Lázaro Ramos, Wagner Moura e Lúcio Mauro Filho. Atrações que trazem situações bastante diferentes daquelas mostradas na maioria das novelas e nos outros programas humorísticos da Globo. O próprio humor do seriado é diferente. Num dos episódios, por exemplo, uma piada consistia na seguinte pergunta: "Você comeria numa lanchonete que tem funcionários com estabilidade?". Uma crítica clara à estabilidade no emprego dos servidores públicos. Mas, de difícil compreensão para quem não domina o tema. É o caso de um público como o de "Zorra Total", por exemplo. A doença burguesa atacando os que lutam contra a burguesia Nesse sentido, a atração parece estar voltada para telespectadores mais informados e capazes de utilizar os preconceitos do programa de maneira mais elaborada. Um público que ajuda a espalhá-los e reproduzi-los. São os chamados formadores de opinião. Da mesma forma que "Os Aspones" é um experimento estético, a reação de seu público é um sintoma da disposição da camada mais informada da população de absorver discursos conservadores mais elaborados. Tudo isso medido pela audiência. Há coisas muito sutis. Por exemplo, o novo chefe do setor é Tales (Selton Mello). Ele chega ao local disposto a aplicar idéias novas de engenharia gerencial, convívio profissional, etc. Mas, logo se rende à mesmice. Parece que com a administração pública não adianta. Não há reengenharia que venha a dar jeito. Mesmo assim, deixa-se um espaço para que os realizadores do programa se defendam. A impossibilidade de melhorar não é por causa dos servidores ou pelo fato de se passar em um órgão público, diriam eles. Seria pelo corte de verbas. Tudo bem. O problema é que o senso comum criado com muita ajuda da própria Globo é o de que políticos são todos iguais. Só pensam em si mesmos. Então, nunca vai ter jeito. Estado, governo e repartição. A rede pública de ambulatórios, hospitais, escolas etc. Tudo isso sempre será impossível de administrar. Novamente, há um fundo de verdade nisso. Mas, nossa resposta não pode ser a mesma que a deles. Não é a privatização dos serviços públicos. É a superação de um sistema público voltado para atender os interesses de uma pequena minoria. É a construção do verdadeiro espaço público, em que cada vez mais poder público e população se confundam. Não para transformar tudo numa grande repartição, erro central das experiências de tipo soviético. Ao contrário disso, temos que colocar nas mãos dos produtores e trabalhadores em geral a administração das coisas em nome de objetivos sociais, livre e democraticamente discutidos e aprovados. Por fim, é verdade que temos que nos solidarizar com os servidores públicos, maiores vítimas do novo programa global. No entanto, é preciso lembrar que a figura do "aspone" é bastante conhecida não só entre os servidores públicos. Ela existe também nos partidos políticos e sindicatos. São produtos de outras tantas burocracias. Não só as do governo. E com estas devemos ser ainda
mais duros. Principalmente, quando aparecem em sindicatos que se dizem
combativos e em partidos que se afirmam socialistas. A presença
de "aspones" nessas entidades está em proporção direta
com sua paralisia e incapacidade para responder às necessidades
daqueles que dizem representar. É a reprodução das
doenças burguesas entre aqueles que dizem lutar contra a burguesia.
O "aspone" é uma peça na engrenagem no Estado capitalista.
Uma necessidade para transformar a máquina pública em algo
de que só alguns fazem uso. Nos sindicatos e partidos de esquerda
é um câncer que precisa ser combatido.
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