Miguel Urbano fala sobre
jornalismo e o poder da mídia no Brasil
Por Ana Maria Straube, 30/09/2004,
para o Jornal Contraponto - PUC/SP
Perto de completar 80 anos, o jornalista português Miguel Urbano Rodrigues ainda tem fôlego para brigar com o sistema. Militante comunista, exilou-se no Brasil durante a ditadura de Antonio Salazar. Trabalhou como editorialista do jornal Estado de São Paulo entre 1957 e 1974, lutando também contra a censura e arbitrariedades impostas pelo governo militar em nosso país. Atualmente, mantém um site na Internet (www.resistir.info), onde procura dar uma visão crítica sobre diversos acontecimentos mundiais. Por que a opção
pelo jornalismo?
Qual é a sua visão sobre o jornalismo brasileiro? Eu penso que em todo lugar há
o mal, o bom, o péssimo jornalismo. No Brasil os jornais de família
agonizam. O Jornal do Brasil tornou-se um "jornalzinho", o Estado de São
Paulo, quando eu trabalhei era um grande jornal, hoje acho decadente. Não
sei mais quem tem o controle, acho que nem é a família Mesquita.
A Folha de São Paulo é um jornal cheio de contradições.
O Brasil tem excelentes jornalistas e maus jornais. Os pequenos jornais
e pequenos sites me causam boa impressão, tenho boa impressão
do que conheço da imprensa do MST, o Correio da Cidadania do Plínio
de Arruda Sampaio tem coisas que boas. Em nível mundial penso que
há uma cumplicidade muito grande com o poder que ameaça a
humanidade, o poder imperial norte-americano e o controle extremamente
negativo que este exerce na mídia.
Há todo um processo de
intimidação. O jornalista acaba por encarar o seu trabalho
como um emprego. Como se fosse funcionário de uma administração,
e o jornalista, ao meu ver, não deve encarar a sua profissão
com esta perspectiva. Não há jornalismo neutro, não
há objetividade jornalística. Toda pessoa tem que ser comprometida.
Às vezes não há consciência. Comprometido não
significa uma opção partidária. O comprometimento
é com um olhar sobre o mundo e uma atitude perante o significado
dos atos humanos. Nós vivemos em um mundo profundamente injusto
quanto à distribuição de riquezas. A mídia
aparece ao serviço das forças opressoras, forças que
querem impor à humanidade um projeto cada vez mais injusto. As demissões
não são um problema só da mídia. Os direitos
conquistados ao longo do século pelos trabalhadores só foram
possíveis porque havia o medo da revolução. Quando
os trabalhadores conquistam a jornada de oito horas, o décimo terceiro
salário, as férias, têm acesso aos bens de consumo,
vai diminuindo o ímpeto da luta de classes. Quando o medo da revolução
desaparece vem a política das demissões, vem a política
que nós chamamos de globalização neoliberal. Essa
política na mídia é um reflexo de uma política
que se encerra numa crise global da humanidade. A humanidade atravessa
a maior crise de sua história. Hoje nós estamos no limiar
de uma crise assustadora, uma crise econômica, política, cultural,
uma crise global de civilização. O que se passa na mídia
é um reflexo de um sistema doente que pretendem continuar impondo
à humanidade.
Não li o projeto mas
parece sempre mal a palavra em si - fiscalizar. Soa-me mal. Eu como diretor
de um jornal que servia aos trabalhadores, fui julgado 190 vezes. Eu creio
que é um recorde mundial. Não pedi inscrição
no Guiness porque é uma empresa reacionária, mas fui julgado
precisamente por defender liberdades num processo revolucionário
e fui acusado, com base em uma lei iníqua, uma lei de imprensa repressiva,
por abuso de liberdades. Eu sempre penso que é ruim quando, de alguma
maneira, o congresso, o governo procuram criar formas de limitar os direitos
dos jornalistas. Se há o jornalismo perverso, o jornalismo apodrecido,
o que é verdade, deve haver também um campo livre para que
os jornalistas exerçam a sua atividade. Eu vivi no Brasil no tempo
da censura, do AI-5. Sou absolutamente contra fiscalizações.
E acho lamentável que o presidente Lula tenha usado a expressão
"vocês são um bando de covardes". Acho que essa atitude emocional
me parece extremamente negativa. Sou contra.
Por outro lado, quem é que vai organizar o combate das massas? Os debates nos Fóruns Mundiais têm colocado essas questões. Os partidos tradicionais pertencem à burguesia e estão dentro do sistema, como o próprio PT no Brasil e na América Latina. Não se pode dizer que existam partidos revolucionários com capacidade para mobilizar. A força revolucionária mais constante na América Latina é o MST. Força no sentido de potencialidade. O caso do Brasil é muito
interessante. Pela primeira vez conseguiu-se reunir forças que repudiam
o sistema e querem transformá-lo. Elegeu-se um presidente que tinha
uma trajetória de fidelidade a certos ideais, com o projeto de transformar
a sociedade e torná-la mais justa por vias institucionais. Aí
eu coloco uma grande interrogação. Essas instituições
foram criadas pela burguesia, para atingir seus objetivos. É possível
usar estas instituições para concretizar objetivos que são
incompatíveis com os da burguesia que os criou? Eu creio que quando
se cede às engrenagens do sistema fica muito difícil. Só
com a intervenção maciça das massas, só quando
o povo se tornar sujeito da história é que será possível
inverter o rumo do processo de integração ao sistema. Sem
participação do povo, não há transformação
da sociedade.
Colaboraram Arturo Hartmann
e Raul Andreucci
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