Romantismo, cinema e TV
Acreditem, o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. O estranho é que Hollywood e a Globo usem e abusem desse tipo de protesto. Por Sergio Domingues, novembro de 2004 O que é o romantismo? Qualquer pessoa na rua responderia a essa pergunta citando canções de Roberto Carlos e até de Chico Buarque. Ou poemas de Vinícius, novelas de Janete Clair e filmes como "Love Story", de Arthur Hiller (1970) "E o vento levou", de Victor Fleming (1939) e até "Olga", de Jayme Monjardim (2004). Aliás, uma das críticas mais comuns a este último filme é o fato de terem transformado a vida dos militantes comunistas, Olga e Prestes, num melodrama digno das novelas da Globo. Mas há os que defendem a produção exatamente por isso. "Afinal", dizem eles, "para fazer chegar a história do casal comunista ao grande público é preciso dar lhe um formato bonito e atraente. Usar uma linguagem a que ele já está acostumado. Falar de amor e paixão". O problema é: por que para ser atraente, uma obra cinematográfica ou televisiva precisa ser romântica? O que é o romantismo, afinal? Uma vez Karl Marx disse algo assim: "O romantismo nasceu com o capitalismo e vai morrer com ele". Por que? Porque o romantismo é um protesto contra a sociedade capitalista. É isso mesmo. Uma afirmação como esta deve ser uma surpresa para quem está acostumado a pensar em novelas, filmes, canções de amor, poesias melosas, como coisas que justificam uma vida conformada diante do capitalismo. Mas vamos com calma. Tentemos definir o romantismo com a ajuda de um dos teóricos marxistas mais inteligentes e criativos da atualidade. Trata-se de Michael Löwy. Em um livro escrito com Robert Sayre chamado "Romantismo e Política", os autores dizem "que a visão romântica é por essência uma reação contra as condições de vida na sociedade capitalista". Mais especificamente, contra o "desencantamento" da vida. Um mundo onde impera o valor-de-troca. Uma sociedade fundada sobre o dinheiro e sobre a concorrência, que separa os indivíduos em "nômades egoístas, hostis e indiferentes aos outros". Mas isso não significa que todo romântico é ou pode tornar-se socialista. Existem vários romantismos, como existem várias formas de ser anticapitalista. Alguém que defenda o retorno à Idade Média, por exemplo, é anticapitalista. Quer a volta dos tempos dos cavaleiros e suas armaduras, dos reis e padres dominando a sociedade. Quadro bonito, mas ordinário. Afinal, quer a volta de uma opressão sobre a mulher ainda maior do que a que vemos hoje. Da religião autoritária, impondo sua fé a todos e castigando os que se recusam a segui-la. De reis e nobres parasitas vivendo da exploração de seus servos. O mesmo pode ser dito sobre visões que idealizam a sociedade grega ou romana. Acham que nelas, sim, a inteligência, a elegância, a bravura imperavam. Esquecem que também imperavam a escravidão, um machismo que considerava a mulher um ser de segunda classe e até um autoritarismo que fez Sócrates se envenenar. Uma produção famosa de Hollywood que faz esse tipo de elogio a um passado nobre é "E o vento levou". O casal principal do filme pertence ao galante mundo do sul dos Estados Unidos, arrasado pela Guerra Civil. Um lugar que seria bonito, se não tivesse sido construído com o sangue de milhões de escravos negros. Também há romantismo de esquerda Por outro lado, também há romantismos de esquerda. Aquele que imagina uma sociedade de iguais, onde não há propriedade privada, nem opressão sobre o semelhante. Esse tipo de romantismo costuma ver seu modelo nas tribos indígenas ou nas antigas sociedades pré-históricas. Imagina utopias, com justiça e liberdade. São como alguns socialistas utópicos dos séculos 18 e 19. Além desse desconforto com o capitalismo, o romantismo também se caracteriza pela valorização do indivíduo. O desenvolvimento da idéia do sujeito individual está ligado ao nascimento e ao funcionamento do capitalismo. Afinal, para os patrões, é cômodo que cada trabalhador se considere um ser isolado e em competição com os outros trabalhadores. Alguém que pode vencer sozinho e não com seus camaradas do sindicato, do partido, da associação. O romantismo também valoriza o indivíduo, mas num sentido heróico e dramático. Alguém que enfrenta as dificuldades da vida, do amor não correspondido ou do amor proibido, como em Romeu e Julieta. E o capitalismo é o exato contrário disso. É o culto do sujeito egoísta, preso a suas mesquinharias, aos valores materiais. O amor apaixonado é o oposto do casamento por conveniência, preso às convenções sociais. É o sentimento que precisa vencer os preconceitos de classe, de raça, de religião etc. Outra característica do romantismo é a busca da totalidade. A comunhão do ser humano com a natureza, com o universo. Algo que o capitalismo não permite ao dividir a existência humana em tarefas parceladas, ao aprofundar a separação entre campo e cidade, esmagar até nossa percepção das coisas sob uma avalanche de informações rápidas e desligadas entre si. Indiana Jones, Romeu e Julieta, Olga e Prestes Se o romantismo é tudo isso, ele é bom? Nem bom, nem ruim, necessariamente. O romantismo faz parte das contradições criadas pelo capitalismo. E quando ele se manifesta nas artes, essas contradições ficam mais visíveis. Mas, os produtores de filmes, novelas, os editores de livros, sabem usar essas contradições para dialogar com os anseios do público, mantendo-os amarrados à concepção de mundo burguesa. É possível fazer uma novela e um filme não românticos. Existem muitos deles. Mas, os românticos acertam ao atingir diretamente a experiência de vida da grande maioria das pessoas. A experiência de indivíduos que se sentem sozinhos, mesmo quando estão em multidões. Que amam com medo de serem abandonados. São abandonados e temem começar a amar novamente. Querem fugir da vida chata e frustrante que vivem na realidade. Se identificam com as figuras heróicas como Indiana Jones, com lugares longínquos como a Terra Média, de "O Senhor dos Anéis". Querem ser os casais trágicos como Romeu e Julieta ou Prestes e Olga. As pessoas se encantam com a natureza que é mostrada na televisão. A novela "Pantanal", de Benedito Ruy Barbosa (1990), por exemplo. Os telespectadores se deliciam com novelas de época, onde o passado é reduzido a uma vida mais simples e inocente. É o caso de "Cabocla", em exibição atualmente. São formas de fugir de um presente ou de um lugar incômodos. Enfim, o romantismo é a linguagem que mais se aproxima da experiência concreta da maioria de nós. Começar a entender esse fenômeno é um bom começo para discutir como as obras estéticas atingem grandes multidões. Também é uma forma de construir caminhos para o diálogo. Muitos de nós já passaram pela experiência de tentar passar filmes políticos para pessoas sem conhecimento de política. Cada vez mais, um "Encouraçado Potenkim", de Sergei Eisenstein (1925), é menos suportável para quem já se acostumou aos padrões dos filmões americanos e produções da Globo. Roncos na sala de exibição não são raros. O que fazer? Transformar o "Manifesto
Comunista" em uma mini-série? Mostrar a história da Revolução
Russa como um dramalhão mexicano? Provavelmente, não seja
o caso. Mas é preciso pensar e discutir mais sobre as produções
culturais para os grandes públicos. Do contrário, só
nos resta o caminho dos cineclubes voltados somente para alguns heróis
românticos de esquerda.
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