"Tudo pode ser dito...": um livro contra a censura

Por Sergio Domingues, novembro de 2004

O governo Lula tentou limitar os abusos das emissoras de tevê. Foi derrotado com ajuda de seu próprio partido. A esquerda revolucionária tem que tomar a frente desta luta. Mas, sem fazer o elogio da censura. O livro de Raoul Vaneigem "Nada é sagrado. Tudo pode ser dito" ajuda a mostrar como isso é possível
 

Recentemente, a Câmara de Deputados aprovou a Medida Provisória 195, editada pelo governo. Entre outras coisas, o texto da MP permitia que entidades da sociedade civil começassem a ter influência na decisão sobre o horário de exibição e a faixa etária recomendada para as atrações das redes de televisão.

A reação da grande mídia não tardou a chegar. A medida foi imediatamente condenada pelos proprietários dos meios de comunicação, e por aqueles que se consideram jornalistas, mas estão mais para sócios de seus patrões. É o caso de Boris Casoy, que escancarou sua já enorme boca para protestar contra o que chamou de "volta da censura".

Não precisaram gritar muito. O que parecia ser uma rara iniciativa do atual governo contra os interesses da grande mídia, logo encontrou uma praia para morrer. Uma semana depois, a MP foi derrubada no Senado, com a vergonhosa colaboração da bancada do PT. 

A "liberdade de imprensa está salva", comemoraram os grandes patrões da imprensa brasileira. Na verdade, o que está salva é a liberdade de imprensa somente para alguns. Para os que têm dinheiro e boas relações com os donos do poder para controlar o direito à informação no país. 

Mas, quase ao mesmo tempo em que acontecia mais esta triste demonstração de submissão governamental, foi lançado no Brasil um pequeno livro de Raoul Vaneigem, chamado "Nada é sagrado. Tudo pode ser dito" (Parábola Editorial). O espírito do livro é libertário. Ou seja, defende a liberdade mais radical. A liberdade de que todo indivíduo possa dizer aquilo que pensa, por mais subversivo ou odioso que seja.

Autorizem todas as opiniões. Saberemos reconhecer as nossas
Todos os que lutam por uma sociedade social e politicamente igualitária, com liberdade, só podem concordar com isso. Afinal, a censura, a proibição de que certas opiniões sejam divulgadas, estão na contra mão desta luta. Mas, o que dizer da defesa do racismo, da condenação ao homossexualismo, da afirmação de valores machistas, do ódio ao estrangeiro? Como reagir a opiniões que atentam contra a igualdade humana e o direito à liberdade de comportamento, opção, religião, etc? Seriam estas manifestações exceções à liberdade de opinião e de ampla divulgação?

O livro de Vaneigem responde a essa questão da seguinte maneira: "Autorizem todas as opiniões. Saberemos reconhecer as nossas". A rigor, trata-se de uma afirmação que faz todo sentido. Afinal, se temos certeza da justeza daquilo que defendemos, saberemos nos defender contra todos os preconceitos, calúnias, distorções e "verdades científicas" dos que procuram semear o racismo, o machismo, a intolerância religiosa. Saberemos desmascarar os argumentos de quem defende calar ou eliminar fisicamente tanto os que estão fora dos padrões aceitos pelos exploradores e dominadores, como os que discordam das injustiças e lutam contra elas.

Mas, o fato é que os grandes meios de comunicação dispõem de um poder econômico cada vez maior para falar o que bem entenderem, como bem entenderem. Além disso, as crianças são vítimas de um ataque publicitário covarde na forma de anúncios de brinquedos e doces. O próprio Vaneigem reconhece que elas devem ser protegidas de perigos que ignoram. Portanto, há uma desigualdade de poder nesta batalha. E é por isso que a quebra do monopólio dos meios de comunicação é uma condição prévia. Trata-se de buscar uma situação que se aproxime da igualdade de condições para um verdadeiro debate de idéias. 

No entanto, mesmo os críticos mais duros do governo Lula, têm de concordar que enfrentar seriamente a grande mídia já seria entrar na região de medidas revolucionárias que nunca estiveram nos planos dos que hoje ocupam o governo federal.

Então, é a esquerda revolucionária que tem que tomar para si o combate ao monopólio dos meios de comunicação no Brasil como parte da própria luta pelo poder. O problema é que esse tipo de situação pode virar desculpa para adiar o importante debate sobre quem decide o que se deve ou não falar e mostrar. Não dá para esperar a tomada do poder para ver como fica a questão da liberdade de opinião.

Censura contra nós, nunca. Contra eles, pode ser
Há uma tentação na esquerda a adotar um raciocínio do tipo: "Censura contra nós, nunca. Contra eles, pode ser". A justificativa seria a de que nós lutamos pela liberdade e contra a exploração. Digamos que sim. Deixemos de lado o fato de que muitos dos lutadores por estas causas, se revelem defensores da liberdade apenas para si mesmos e da exploração para os outros. O problema não é esse. 

O livro de Vaneigem afirma que "nenhuma ignomínia deve permanecer indizível, sob pena de se enraizar ainda mais". Não há como não concordar. Afinal, preconceitos escondidos precisam vir à luz do dia para serem combatidos. Se permanecerem dormentes, podem se manifestar de forma explosiva e fatal quando despertados por lideranças conservadoras e habilidosas. Era deselegante ficar falando mal de judeus na refinada sociedade alemã. Mas, quando Hitler utilizou esse preconceito para justificar a crise econômica, até os mais chiques dos alemães apontaram seu dedo para os judeus.

No entanto, há um motivo mais profundo para nos negar a enterrar afirmações conservadoras e fascistas sob proibições e censuras. Trata-se do combate ao desprezo pela capacidade alheia de julgamento. À idéia de que a população é ignorante demais para não ser vitima de preconceitos.

Com essa preocupação, o autor afirma que "o direito de proferir impunemente estupidezes ou infâmias inclina a levá-las até o limite em que elas se desfazem por si mesmas". Ou seja, obrigar um idiota fascista a se calar pode tornar-se um valioso um álibi para que continue a divulgar sua ideologia envenenada com ares de profeta ou de herói. O contrário disso é permitir que as pessoas enxerguem por si mesmas os erros do discurso fascista e desenvolvam suas próprias resistências ao veneno que o empesteia.

Claro que é preciso colocar as coisas em termos mais concretos. O monopólio dos meios de comunicação e a utilização de instituições religiosas e pedagógicas pelas classes dominantes são armas poderosas. Verdadeiras máquinas de produzir divisões entre os dominados através de preconceitos e superstições. E um manejo inteligente desses aparelhos ideológico pode disfarçar bastante bem a estupidez de muitas de suas idéias. Nesse sentido, as afirmações de "Nada é sagrado..." podem ser consideradas um tanto ingênuas.

O risco de propor novas formas de dominação
Mas, Vaneigem fica mais concreto quando cita dois exemplos. O primeiro é a rádio ruandesa "Mil Colinas", que incentivou o massacre que matou mais de 800 mil pessoas das etnias hutu e tutsi, em 1994, em Ruanda. O outro exemplo é o decreto religioso (chamado "fatwa") lançado pelo aiatolá Khomeini contra o escritor Salman Rushdie, em 1989. O decreto oferecia recompensa a qualquer pessoa que matasse o escritor que cometeu o crime de escrever "Versos Satânicos", livro que Khomeini considerava ofensivo à fé islâmica.

Ao primeiro exemplo, Vaneigem responde que "diante de uma população ou de um grupo vítima de uma ideologia racista e xenófoba, a expressão do ódio é igual a uma via de fato". Por isso, o autor considerou correta a condenação à prisão dos jornalistas responsáveis pela emissora ruandesa. No caso do escritor Salman Rushdie, o livro afirma que "todo aquele que se erige em messias, profeta, papa (...) tem o direito de definir o que considera ser uma blasfêmia contra seu credo (...), mas que não se atreva a levantar nenhuma interdição judiciária acerca de opiniões que desaprova", usando "métodos da Inquisição, fatwa, máfia...".

São propostas interessantes e merecedoras de debate porque estão animadas pela disposição de discutir aqui e agora, questões que não podem se deixadas para depois. Do contrário, podemos repetir experiências terríveis, como a do "socialismo" de tipo soviético, em que o direito à educação, saúde, emprego foi trocado pela liberdade de discordar.

"Nada é sagrado. Tudo pode ser dito" deixa muitas questões em aberto. No entanto, Vaneigem está correto quando afirma que as pessoas estão tão "acostumadas a ser assistidas, guiadas, governadas, que não concebem outra mudança de existência a não ser a opção por outros jugos".

É este risco que nós, socialistas e libertários, não podemos correr. O de oferecer novas formas de dominação como alternativas às atuais.

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