Cerco
à baixaria na TV
Por Gustavo Barreto, novembro de 2004 Reportagem especial da revista Carta Capital da semana passada (número 315, de 3/11/2004) traz informações detalhadas sobre as ações em andamento no país para cercar a baixaria e o desrespeito aos direitos humanos na TV. Uma das frentes é a campanha "Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania", da Câmara dos Deputados em parceria com amplos setores da sociedade civil organizada, que se tornou uma pedra no sapato de emissoras e anunciantes. Em outra iniciativa pouquíssima divulgada, três emissores da Pernambuco (repetidoras de conteúdo de SBT, Band e Record) assinaram um acordo com o Ministério Público concordando em não exibir baixaria nos programas policiais do horário vespertino. Nova associação isola Rede Globo Na quinta-feira (14/10), foi assinado o estatuto que cria a ABRA (Associação Brasileira de Radiodifusores), tendo como sócios principais as redes SBT, Record, Bandeirantes e RedeTV!. Segundo a revista Carta Capital, esse ato deixa isolada a Rede Globo, que se mantém na ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão). As outras redes acusam a Globo, entre outras coisas, de ficar com 80% do bolo publicitário, apesar de ter 50% da audiência. "A Globo paga o BV (bonificação de volume) para as agências no começo do ano, o cara da agência troca o barco, compra um outro avião a jato, e a Globo recebe 80% das verbas", diz Amilcare Dallevo Jr., da RedeTV!. Proprietários de TV mentem e 'esquecem' Constituição Apesar de unidas, as quatro emissoras opositoras da Rede Globo também são freqüentemente citadas no ranking da baixaria (veja notícia abaixo). A desculpa para ser contrário ao controle social e popular da TV é sempre a mesma, como se percebe na resposta do próprio Dallevo: "Temos visto inúmeras tentativas de se voltar à censura no país. Quando você coloca isso na mão de uma ONG, no final da linha você estará colocando o arbítrio de vetar ou não alguma coisa na mão de um grupo restrito de pessoas. (...) Quando você cria um grupo de poucas pessoas, que tem o poder, a caneta na mão, de ditar o que é bom ou não para quem assiste, na realidade está se acabando com a liberdade de expressão". O que Dallevo em seu patético argumento chama de "um grupo restrito de pessoas" é nada mais nada menos que quase 60 grupos da sociedade civil organizada, entre eles o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), a Câmara Municipal de São Paulo, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conselho Federal de Psicologia, a Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social (ENECOS), a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), o Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), o Instituto Akatu pelo Consumo Consciente, o Instituto Ethos de Responsabilidade Social, o MIDIATIVA - Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes, o MNDH - Movimento Nacional de Direitos Humanos, a UNESCO (e portanto a ONU), a Rede Brasil de Comunicação Cidadã (RBC), a Rede DhNet - Direitos Humanos e Cultura, entre outras. Este é o "grupo restrito de pessoas" a que se referem os proprietários de tevê (Dallevo não foi o único). Vitória da campanha na Câmara assusta conservadores Foi aprovada na terça (19/10), na Câmara dos Deputados, a MP (medida provisória) 195, com uma série de modificações em relação ao texto editado pelo presidente Lula em junho. Uma delas é a obrigatoriedade do V-chip, um dispositivo para bloqueio temporário da recepção dos programas que os usuários julguem inadequados. A determinação está prevista em lei, desde 2001, mas não vinha sendo cumprida, por pressão dos fabricantes e das emissoras. A MP 195 estabelece um novo limite para o cumprimento: 31 de outubro de 2006. Como foi aprovada na Câmara, tramita no Senado e deve ser votado ainda esse mês. E já teve gritaria dos defensores dos proprietários de tevê. O senador Heráclito Fortes (PFL-PI) disse nesta quinta (4/11) que, apesar da medida ser "um clamor da sociedade", o governo (sic) teria aproveitado para incluir dispositivos que podem dar margem à censura prévia de programas de televisão. "Um dos problemas está no artigo 3º, mantido pelos deputados, que estabelece que "competirá ao Poder Executivo proceder à classificação indicativa dos programas de televisão, por faixa etária". A falta de clareza abre brecha para que se torne impositiva a classificação de programas e pode dar margem à censura prévia, já que o segundo parágrafo do mesmo artigo diz que o conteúdo da programação deverá ser informado previamente", afirmou. Com a justificativa de que "o texto é perigoso porque não estabelece limites e diretrizes ao novo regulamento", Heráclito tenta atrasar a votação e ganhar tempo para tentar minar as mudanças. Empresários reagem O desespero diante da vitoriosa campanha do deputado Orlando Fantazzini já está chamando a atenção dos conservadores e empresas diretamente atingidas. As redes Bandeirantes e Record querem inclusive cassar o mandato de Fantazzini por pressionar os anunciantes a não apoiar a baixaria. Diz Dennis Munhoz, da Record: "(...) O deputado Fantazzini não tem nada o que se meter em uma relação particular (sic) entre duas empresas, que não envolve verba pública (sic), nenhuma parceria com o Estado". Munhoz não parece ser ignorante. Sabe que está ignorando e mentindo descaradamente. O artigo 220 da Constituição determina a criação de mecanismos capazes de defender a pessoa e a família dos excessos. Os serviços de radiodifusão são concessões do serviço público e exercem função social. Envolve muita verba pública e são concessão do Estado. O que é baixaria? Quem opina é o deputado Orlando Fantazzini (PT-SP): "É a programação que sistematicamente afronte dispositivos da Constituição, da lei ordinária e das convenções internacionais [assinadas e reconhecidas pelo Brasil]. Fazer apologia ao crime é afrontar o Código Penal. Estimular ou instigar preconceito racial fere a Constituição. O artigo 1o da Constituição diz que a República tem por princípio e fundamento a dignidade da pessoa humana. Então, você degradar a imagem do ser humano é uma afronta. Usar a mulher como mero objeto sexual desrespeita a Convenção Internacional dos Direitos da Mulher. E assim por diante. Todos os nossos critérios são objetivos. Não entramos em critérios subjetivos: o que pode ser baixaria para você, não é baixaria para mim. Não saímos disso. Até para não incorrer o risco de cair no fundamentalismo religioso, no moralismo". O que é censura? Quem opina é Eugenia Augusta Gonzaga Favero, procuradora regional dos Direitos do Cidadão, que liderou a ação contra Gugu Liberato por causa da falsa entrevista com integrantes do PCC: "Censura é um ato arbitrário, que te afeta sem dar oportuniodade de defesa. É o que acontecia no tempo da ditadura. Hoje, quando recorremos ao Judiciário, exercemos um direito legítimo. Vivemos uma ditadura ao contrário: a mídia lesa e nós não podemos dizer nada". Orlando Fantazzini também opina: "A função da Comissão de Direitos Humanos da Câmara é promover e defender os direitos humanos. E denunciar quem viola os direitos humanos. E nós estamos fazendo isso. A campanha não é minha, é da Comissão de Direitos Humanos, é da Câmara. Acho que [os proprietários de emissoras] deram um tipo no pé. E mais: vivemos num país livre. A liberdade de expressão não é só das emissoras de tevê. O cidadão também tem direito. Eu não posso dizer que um programa é uma porcaria? Eu não posso ligar para o anunciante e dizer: em vez de anunciar nesse programa, que não vale nada, anuncie num programa decente? É meu direito". João Kleber lidera pela terceira vez O programa "Tardes Quentes", apresentado por João Kleber na Rede TV, é o primeiro colocado da lista da baixaria na TV. Com 85 reclamações dirigidas à campanha "Quem Financia a Baixaria é Contra a Cidadania", o programa foi considerado impróprio para o horário, além de utilizar apelo sexual e a incitação à violência. É a terceira vez que o apresentador chega ao topo da lista. "É lamentável ver o apresentador João Kleber nessa posição, depois de tantos compromissos firmados com a campanha de que os seus programas passariam por reformulações, mas isso não ocorreu", disse o deputado Orlando Fantazzini (PT-SP), coordenador da campanha. As denúncias são dirigidas ao 0800.619.619 e ao e-mail eticanatv@camara.gov.br Quatro horas e 25 minutos por dia As crianças e os adolescentes brasileiros são provavelmente os que mais vêem televisão no mundo, informa Daniel Castro no jornal Folha de S. Paulo. Por outro lado, são os que menos lêem livros. Os que moram em grandes cidades quase não brincam. E a quase totalidade deles ignora a prática de esportes coletivos e o uso do computador. Essa gangorra é o retrato de uma pesquisa inédita feita pelo instituto Ipsos em dez países (entre eles Estados Unidos, Reino Unido e China). Foram entrevistados 5.500 pais e responsáveis por crianças e adolescentes de 2 a 17 anos. A pergunta: o que seus filhos fazem todos os dias? No Brasil, 57% dos 500 entrevistados responderam que seus filhos assistem a TV durante pelo menos três horas por dia e 31%, de uma a duas horas. Só 5% falaram que seus filhos não vêem TV. Os dados são mais conservadores que os do Ibope. Segundo o instituto, os telespectadores de 4 a 17 anos passaram em setembro, em média, quatro horas e 25 minutos por dia com a TV ligada. Em contraponto à televisão, 43% dos pais brasileiros ouvidos disseram que seus filhos não ocupam nada de seu tempo lendo livros ou brincando com os amigos; 79% disseram que seus herdeiros não praticam esportes coletivos; 69% afirmaram que eles não usam computadores. "O resultado
é preocupante. Quando há mais TV do que leitura, há
um empobrecimento do país. Não brincar também é
perigoso. A criança que não brinca não conversa, fica
isolada", diz Ana Bock, presidente eleita do Conselho Federal de Psicologia
(CFP) e professora da PUC-SP.
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