Conselho federal da meia dúzia de famílias donas do jornalismo no Brasil

Marilene Felinto, da Caros Amigos, outubro de 2004

O alvoroço provocado pela imprensa à proposta de criação de um conselho federal de jornalismo, feita pelo governo federal, chama atenção, de um lado, pela desfaçatez, pela falta de vergonha na cara dos controladores da informação no país; de outro, pelo grau de submissão e conivência que une a gente da mídia, do focazinho mais novo ao colunista mascarado e grisalho ("independente" só na cozinha da casa dele).

Se todas as profissões têm seus conselhos (Federal de Medicina, Federal de Odontologia, Ordem dos Advogados etc.), por que não os jornalistas? Essa a pergunta simples, para uma resposta também simples: pela simples sugestão ou insinuação de que o controle da informação e a divulgação da informação, hoje a cargo da meia dúzia de famílias donas da imprensa, passe para a sociedade civil. Os donos da mídia, ou "donos do mundo", tremem nas bases à mera cogitação dessa idéia.

Alegam que um conselho significaria "censura" e "ameaça à liberdade de expressão e de imprensa". Artifício de cinismo para esconder o que de fato ocorre: que os censores são eles mesmos, os donos de jornal, revista, redes de televisão e afins. Liberdade? As redações dos jornalões, televisões e revistonas brasileiras são hoje o reino dos censores, os diretores de redação e seus editorezinhos fantoches. Censura, cerceamento à liberdade de expressão hoje no Brasil têm outro nome: chamam-se redação de jornal, de telejornal, de revista e outros impressos da enganação. "Hoje", quer dizer: especialmente quando da posse, no Brasil, de um governo (o governo Lula) fora da ordem ideológica, econômica e política que constitui a elite social a que pertencem os donos da mídia. No âmbito internacional, "hoje" quer dizer especificamente pós 11 de setembro e rendição da imprensa norte-americana (e outras) ao delírio fascista da administração Bush.

Uma cena risível relacionada à proposta de criação do conselho federal de jornalismo foi a de uma repórter da Rede Globo de Televisão recebendo um prêmio, um tal de "Comunique se" (salvo erro meu) - desses premiozinhos que a mídia inventa para que seus profissionais premiem uns aos outros, costume horroroso, que, de si só, já tira metade da credibilidade desses veículos -, pois a repórter Zileide Silva, ao receber o prêmio de "melhor cobertura de política" ou jornalismo político ou coisa que o valha, pronunciou-se contra a criação de um conselho federal de jornalismo, dizendo, em palavras dela, algo que se resume em: porque nós não precisamos, nós sabemos fazer, esse prêmio mostra que nós sabemos fazer! Pasmem. Zileide Silva terminou sob os aplausos tépidos e hesitantes de uma platéia de comparsas de sua classe.

Coitada da moça. Como se a questão fosse essa (saber ou não saber fazer jornalismo, receber ou não receber esses oscarzinhos fabricados pela mídia). Um conselho federal de jornalismo seria criado para coisa muito mais séria e importante: para combater a censura invisível exercida dentro das redações, que impede o cidadão de receber a informação justa, que, em palavras de Ignacio Ramonet, "cria uma espécie de tela. Uma tela opaca que oculta, que torna eventualmente mais difícil do que nunca, para o cidadão, a procura da informação justa. (...) A censura já não é visível, precisamos desenvolver um esforço de reflexão ainda maior para conseguirmos compreender os novos mecanismos em que ela se assenta".

Mas o que esperar de jornalistas de televisão? São os tipos mais submissos e alienados da profissão: amarrados pelos altos salários que a televisão oferece, só fazem o que o patrão manda, são meros papagaios reprodutores de pautas impostas a pulso, de textos editados e reeditados, cortados até o osso, homogeneizados à moda da "linha editorial" (ou linha de montagem da censura) do veículo.

"A imprensa escrita e audiovisual é dominada por um jornalismo reverente", como bem diz Serge Halimi, "por grupos industriais e financeiros, por um pensamento de mercado, por redes de conivência. Um pequeno grupo de jornalistas, onipresentes, impõe a sua definição de informação-mercadoria a uma profissão cada vez mais fragilizada pelo medo do desemprego. Eles servem aos interesses dos donos do mundo. São os novos cães de guarda" (Serge Halimi, Les Nouveaux Chiens de Garde).

Pois eu me orgulho de ter caído fora do establishment da imprensa paulista por me recusar a escrever o que o patrão manda. Não fui demitida da Folha de S. Paulo (como ainda me perguntam alguns leitores): pedi demissão. Saí no momento exato em que vieram impor o que eu deveria ou não deveria escrever. Não escrevo o que o patrão manda. Não nasci para marionete.

A censura existe, sim. Não é igual à censura das ditaduras, funciona de outra maneira. "Como se oculta hoje a informação?", pergunta Ramonet. "Através de um aumento de informações: a informação é dissimulada ou truncada porque há demasiada para consumir. E não chegamos mesmo a aperceber-nos da que falta." Além disso: a censura da redação de jornal "consiste em suprimir, em amputar, em proibir um certo número de aspectos dos fatos, ou até a totalidade dos fatos, a ocultá-los, a escondê-los". A tudo isso, diz ele, vem juntar-se aquela prática muito difundida nos meios midiáticos que consiste, para qualquer jornalista que pretenda fazer normalmente carreira no meio, não criticar as práticas criticáveis dos seus confrades. "Os midia, para venderem, têm de dar uma boa imagem de si mesmos e têm, pelo menos, de fazer acreditar na sua própria integridade e imparcialidade."

Na "nova ordem mundial" em voga, a informação é impulsionada e guiada pelo mercado e se caracteriza, como lembra Roberto Sávio, por uma crescente concentração, tanto dos meios de comunicação quanto das empresas de telecomunicações, e pela homogeneização dos conteúdos, o que desemboca no nefasto fenômeno do "pensamento único".

Exemplo: os dois maiores jornais diários de São Paulo, Folha e Estado, cobrem de forma idêntica o governo Lula: minimizam os sucessos (política externa, geração de empregos, equilíbrio da economia, investimentos na área social etc.) e optam pela desmoralização pura e simples. Não são jornais críticos (e crítica sempre há a ser feita), são jornais difamadores, que apostam na derrocada de um governo só porque não se trata de um governo da laia deles.

O negócio dos dois jornais é regurgitar na deformação preconceituosa, na desinformação, na mensagem negativa que enquadre os sem-nada, os sem-terra, os Lula da vida (nordestino, pobre, sem diploma universitário) e convença a sociedade de que eles nada valem. As maiores revistas (Veja, Época, IstoÉ) seguem na cola desse pensamento único. São todas iguais na estupidez. Uma vergonha. Não há mais o que ler. Essa história de jornalismo independente no Brasil de hoje é uma fraude espetacular.

"Questionamo-nos sobre o futuro dos jornalistas. Eles estão em vias de extinção", diz Ignacio Ramonet. "O sistema já não os quer. Podia funcionar sem eles. Ou digamos, antes, que aceita funcionar com eles, mas atribuindo-lhes um papel menos decisivo: o de operários numa produção em cadeia (...). Dito de outra maneira, rebaixando-os para a categoria de retocadores de despachos de agência. A qualidade do trabalho dos jornalistas está em vias de regressão e, com a precarização galopante da profissão, acontece o mesmo com o seu estatuto social."

Outro dia, minha editora de livros reclamou que tenho pouca inserção na mídia, que a mídia resiste a meu nome quando se trata da divulgação dos meus livros. Pois prefiro morrer de fome a vender um único exemplar se, para isso, tiver de entrar no jogo do conchavo geral do jornalismo-mercadoria. Nunca entrei. Nunca entrarei. Mais do que a mídia resistir a meu nome, resisto eu a ela - e com todo o desprezo a que tenho direito.
 

Marilene Felinto é escritora e jornalista. Contato: marilenefelinto@carosamigos.com.br
 

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