Nos subterrâneos da “grande”
mídia
Documentário independente
arrebata platéias nos EUA ao dissecar relação promíscua
entre jornalismo, lucros e poder. Tiago Soares, Planeta Porto Alegre*,
setembro de 2004
Sentados frente a frente, o repórter e o candidato presidencial tentam quebrar o gelo antes da entrevista. “E a família?”, pergunta o político. “Ah, vão bem. Minha mulher e minha cunhada estão firmes fazendo campanha pelo senhor”, responde, casualmente, o jornalista. Entusiasmado, segue: “Elas estão rodando o Estado todo. No início minha esposa estava meio receosa, mas, agora, está entusiasmadíssima”. O candidato ri, e ri de novo. Comenta: “Sua esposa tem uma alma muito boa. Muito boa”. E a entrevista começa. A situação, exemplo pouco recomendável de postura jornalística, é real. Aconteceu em meados de 2000. Foi protagonizada pelo analista político da rede de TV norte-americana Fox News (retransmitida no Brasil pela Net), Carl Cameron, e o então candidato à presidência dos EUA, George W. Bush, e é parte de Outfoxed (EUA, 2004), documentário do norte-americano Robert Greenwald que analisa os subterrâneos da grande mídia corporativa. Rodado com apenas 300 mil dólares, orçamento baixíssimo para os padrões norte-americanos, Outfoxed (trocadilho com o nome Fox e expressão que, em inglês, significa algo como “passado para trás”), destrincha os efeitos políticos e sociais do controle da informação pelos grandes grupos de mídia. Para isso, usa o exemplo dos mecanismos de produção da rede jornalística de TV a cabo Fox News , do magnata das comunicações -- e Republicano -- Rupert Murdoch. Da sala de redação para o marketing As restrições orçamentárias enfrentadas pelo documentário aparecem com nitidez. Mas a qualidade da análise fala mais alto. Ela está embasada no trabalho de críticos de mídia, ex-funcionários da Fox, políticos e acadêmicos -- um grupo que inclui gente como o mitológico jornalista Walter Cronkite, o veterano crítico cultural James Wolcott, e o analista político/agitador cultural Al Frenken. Este “elenco” dá fôlego a um minucioso escrutínio dos circuitos pelos quais a informação é produzida dentro da mídia corporativa e sua relação com as prioridades das agendas de governo e o jogo de forças da política partidária. Há motivos para a escolha da Fox News como caso de estudo., Apesar do viés abertamente pró-republicano, a Fox é exemplo emblemático de uma “escola” de jornalismo cada vez mais atraente às grandes corporações de mídia. Ela se define por dois fatores-chave: a crescente intimidade nas relações entre os poderes público e corporativo, e uma dificuldade geral em definir os limites que separam a informação jornalística do puro (e lucrativo) entretenimento. “Ficava abismada em perceber como as pautas migravam da sala de redação para o departamento de marketing”, afirma, no documentário, uma ex-funcionária da rede de Murdoch. E dá-lhe exemplos de reportagens embaladas para presente, entrecortadas por vinhetas vibrantes e apresentadas por âncoras que, deixando de lado qualquer fiapo de objetividade e carregando no apelo emocional, atingem os telespectadores no que têm de mais vulnerável. Tudo sempre acompanhado, para que não dê muito na vista, do slogan “fair and balanced” – “justo e equilibrado”, em português. Uma fórmula lucrativa que pode causar ainda mais estragos quando coordenada com posições políticas entusiasmadas. Repetir, repetir, repetir Australiano de nascimento, arquiteto de um império editorial na Austrália e Reino Unido, Rupert Murdoch, tornou-se cidadão norte-americano (e ferrenho defensor das causas do Partido Republicano) em meados da década de 80. Sua naturalização que foi, em boa parte, estimulada pelo interesse em adentrar o nada desprezível mercado televisivo norte-americano. Nos EUA, tornou-se partidário entusiasmado de Ronald Reagan, e em pouco tempo já contava com influência política suficiente para montar sua própria rede nos EUA. Quando da fundação da Fox News, em 1996, Murdoch não foi tímido ao alinhar a linha editorial do canal à agenda Republicana. Para homem forte da rede, o escolhido foi Roger Ailes, ex-consultor de comunicação dos ex-presidentes Richard Nixon e Ronald Reagan. A idéia de corporações de mídia alinharem estratégias de produção a interesses políticos e econômicos encontrou na Fox News uma fronteira inexplorada. O canal é o pioneiro numa nova espécie de jornalismo, altamente carregado de agendas, pouco reverente à objetividade e obsessivamente preocupado em vender-se como entretenimento. “Nunca vi rede alguma tratar o jornalismo do modo como a Fox trata”, constata, no documentário, Walter Cronkite, um dos pais do telejornalismo norte-americano. Para as corporações de mídia, a fórmula é como matar os proverbiais dois coelhos de uma só cajadada. Garante às corporações, por um lado, audiência e lucros; por outro, manutenção de influência política. No entanto, isso traz, em médio prazo, o risco de deixar “encurralados” os grandes grupos de mídia. Limitados por sua estrutura monolítica e desesperados por audiência, acabam adotando práticas mais apelativas que as dos concorrentes – algo que, invariavelmente, nivela por baixo o que é oferecido ao espectador. Mais que ofender o bom senso dos telespectadores, essa homogeneização pode acabar perigosamente refletida no processo político. Ou, como posto no filme pelo autor e analista político David Brock: “Quando entram na cabine de votação, as pessoas já foram submetidas a uma campanha, e a uma série de informações falsas, distorcidas, caricaturais. Além disso, há um eco, uma câmara de ressonância em outros veículos, que faz com que essa informação seja repetida, e repetida, e repetida. É bem possível que, ao fim, elas nem saibam de onde essa informação veio -- e isso põe a democracia em risco”. Além da propaganda Apesar de transformado em arma de contra-propaganda pelo Partido Democrata – o DVD do filme vem sendo vendido a preços promocionais por publicações ligadas ao partido, além de exibido em encontros promovidos pela MoveOn --, Robert Greenwald (que, entre outros filmes, dirigiu também o polêmico “Uncovered”, sobre a guerra no Iraque) faz questão de deixar claro que seu objetivo era outro quando pensou o documentário. “Outfoxed é sobre controle da mídia, pretende dialogar com o fato de que hoje cinco companhias virtualmente controlam a mídia norte-americana. Seu foco é na Fox News por ser este um exemplo do que acontece quando se tem o controle extremo da mídia”, declarou o diretor em entrevista ao website I Want Media. Para rastrear e analisar o conteúdo da programação do canal, Greenwald contou com o auxilio de painéis reunindo dezenas de voluntários, gente que depurou toda a informação veiculada pela Fox News 24 horas por dia ao longo de vários meses, analisando o que – e como – era veiculado. Foi desse “olhar coletivo” que o diretor pinçou o mosaico de exemplos que costura a argumentação – o que, no filme, acaba resultando numa edição mais equilibrada, algo “blindada” contra maiores tentações maniqueístas. Outfoxed ainda não tem previsão de estréia no Brasil. O barulho causado pelo documentário nos EUA transformou-o num dos azarões da temporada, levando-o a fazer caminho inverso ao normal -- do DVD para os cinemas e a figurar na lista de títulos mais vendidos na internet pela gigante Amazon. Além disso, o filme vem sendo disponibilizado por internautas para download em redes p2p (peer to peer), como Bit Torrent ou E-Donkey. Licença Creative Commons Greenwald tornou disponíveis ainda os takes “crus” do filme na internet para serem “remixados” por interessados. Gratuito, o material filmado não editado (exceto pelos takes dos noticiários da Fox News, de propriedade da Fox) foi posto à disposição sob licença Creative Commons, através da qual o detentor dos direitos permite a outros que reutilizem sua obra em outros trabalhos. Uma iniciativa que não pára por aí. Afinal, a intenção do diretor, como declarado em entrevista ao Los Angeles Times, é “criar agora um pequeno grupo de pessoas que possa continuar a fazer documentários, curtas metragens, vídeos, coberturas de conferências, coisas que ajudem organizações que necessitem desse tipo de material. Tenho vontade de fazer isso não só nas iniciativas relacionadas com as grandes questões, mas também com aquelas ligadas às questões dos movimentos populares”. Serviço:
*Publicado em www.planetaportoalegre.net:
21/09/2004
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