Veja que porcaria
José Arbex Jr., setembro de 2004
 

“O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) criou sua própria versão das madraçais – os internatos religiosos muçulmanos em que crianças aprendem a recitar o Corão e dar a vida em nome do Islã. Nas 1.800 escolas instaladas em acampamentos e assentamentos do MST, crianças entre 7 e 14 anos de idade aprendem a defender o socialismo, a ‘desenvolver a consciência revolucionária’ e a cultuar personalidades do comunismo como Karl Marx, Ho Chi Minh e Che Guevara.” Assim começa a mais nova peça de jornalismo da revista Veja, de 8 de setembro de 2004, em “reportagem” assinada por Monica Weinberg.

No momento em que o artigo é publicado, a relação entre “socialismo” e “madraçais” remete o leitor, imediatamente, ao massacre praticado na escola de Beslan, por fundamentalistas islâmicos que lutam pela independência da Chechênia frente à Rússia. A mídia, em geral, e a revista Veja, em particular, ocultam, por exemplo, que foi o então presidente estadunidense Jimmy Carter – esse símbolo da democracia ocidental – que armou, treinou e organizou os fundamentalistas islâmicos, a partir de 1979, como força de oposição à ocupação soviética do Afeganistão. E foi depois a CIA – esse corpo vigilante de defesa da democracia – que articulou os vínculos entre os fundamentalistas afegãos e os da Chechênia. A mãozinha da CIA, portanto, está em Beslan, tanto quanto a de Vladimir Putin. Mas isso Veja não diz.

O que a revista diz é que “socialismo” e “fanatismo religioso” são a mesma coisa e que isso se ensina nas escolas do MST. Não se trata de “interpretação”. Podemos ler, já no final do primoroso texto, sobre o “modelo” adotado pelo MST: “Um modelo, acrescente-se, falido do ponto de vista histórico e equivocado do ponto de vista filosófi co. Está-se falando, evidentemente, do marxismo. Falido porque levou à instauração de regimes totalitários que implodiram social, política e economicamente. Equivocado porque, embora se apresente como ciência e ponto final da filosofia, nada mais é do que messianismo. De fato, o marxismo não passa de uma religião que, como todas as outras, manipula os dados da realidade a partir de pressupostos não verificáveis empiricamente. E, assim também como as religiões, rejeita violentamente a diferença”.

É fantástico! Em algumas poucas linhas, a “jornalista” – que, pelo tom peremptório deve ser uma autoridade mundialmente reconhecida nos campos da filosofia, ciência política e teologia – resume pelo menos 156 anos de história, desde que foi publicado o Manifesto Comunista dos “fanáticos religiosos” Karl Marx e Friedrich Engels. O Prêmio Pulitzer de excelência jornalística é pouca coisa.

A reportagem descreve um quadro impressionante: “Pelo menos 1.000 dessas escolas são reconhecidas pelos conselhos estaduais de educação – o que significa que têm status idêntico a qualquer outro estabelecimento de ensino da rede pública e que seus professores são pagos com dinheiro do contribuinte. Elas nasceram informais, fruto da necessidade de alfabetizar e educar os filhos de militantes do movimento – que chegam a ficar durante anos acampados nas fazendas que invadem, à espera da desapropriação. No fim dos anos 80, atendendo a uma reivindicação do MST, o governo passou a integrar essas escolas improvisadas à rede pública. Parte delas funciona nas antigas sedes das fazendas invadidas, parte foi construída pelos Estados e municípios. Ao todo, as escolas do MST abrigam 160.000 alunos e empregam 4.000 professores”.

Ora, existe algo muito estranho nisso tudo. Segundo a própria Veja, mais da metade das escolas são “reconhecidas pelos conselhos estaduais de educação”. Será que ninguém notou que as escolas funcionam como centro de formação de fanáticos? Foi necessário que a iluminada Veja erguesse a bandeira? Talvez fosse o caso de acrescentar mais um título à articulista: Doutora Absoluta em Pedagogia.

A coisa fica ainda mais esquisita quando se sabe que os órgãos da Organização das Nações Unidas para a Educação e a Infância (Unifef e Unesco) premiaram várias vezes o MST pela excelência dos métodos pedagógicos empregados pelo movimento, baseados nos trabalhos e estudos de Paulo Freire. No início de agosto, ambas as entidades promoveram a 2ª Conferência sobre Educação no Campo, em Luiziânia (Goiás). Adivinhe quem foi convidado para falar? Os editores e “jornalistas” da revista Veja? Não (talvez esteja aí o problema): João Pedro Stedile, da coordenação do MST.

Mas causa realmente indignação à jornalista aquilo que é ensino, “às custas do dinheiro público”: “Os professores utilizam, por exemplo, uma espécie de calendário alternativo que inclui a celebração da revolução chinesa, a morte de Che Guevara e o nascimento de Karl Marx. O Sete de Setembro virou o ‘Dia dos Excluídos’, e a Independência do Brasil é grafada entre aspas. (...) Na escola Chico Mendes, professores exibem vídeos que atacam as grandes propriedades e enaltecem as virtudes da agricultura familiar, modelo que o MST gostaria de ver esparramado no território nacional”.

É realmente intolerável. O dinheiro público deveria ser empregado para ensinar as revoluções de 1776 (Estados Unidos) e 1789 (França), mas jamais, em hipótese alguma, as de 1917 (Rússia), 1949 (China) e 1959 (Cuba); os professores devem dizer que o Brasil é plenamente soberano e punir o aluno que levantar questões embaraçosas como a da dívida externa e a da livre ingerência da CIA nos assuntos da Polícia Federal; a Área de Livre Comércio das Américas (Alca) deve ser vista como uma meta desejada (e nisso não há parcialidade alguma, ao contrário) e a grande propriedade enaltecida (ai do aluno que levantar a pequena questão de que mesmo os Estados Unidos e França fizeram a reforma agrária). E dá-lhe também o título de historiadora emérita à articulista. Haja ideal humanista e democrático.

Veja já perdeu um processo por calúnia, injúria e difamação movido por João Pedro Stedile. Até quando a opinião pública aceitará ser insultada por esse panfleto vagabundo de quinta categoria?
 

José Arbex Jr. é jornalista
 

O que (só) a Veja não quer ver
Além de profissionalismo, faltaram, à reportagem do semanário, informações que certamente entrariam em conflito com o quadro negro que se pretendia construir no imaginário do leitor. A reportagem deixou de citar, por exemplo, que:
 
  • o setor de Educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) recebeu o Prêmio Unicef Educação Participação, em 1995, pelo trabalho de formação de professores e edição de materiais didáticos
  • o setor de Educação MST recebeu, em 1999, o prêmio Pena Libertária, do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (Sinpro-RS), pelo trabalho nas escolas itinerantes
  • o setor de Educação MST recebeu, em 1999, o prêmio Alceu Amoroso Lima, concedido pela Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro
  • o setor de Educação do Movimento recebeu, em 2000, o prêmio Pena Libertária, do Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul, pelo trabalho desenvolvido no Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária - Instituto de Educação Josué de Castro (Iterra)
  • o setor de Educação do MST redebeu, em 2000, o prêmio Paulo Freire de compromiso social, consedido pelo Conselho Federal de Psicologia
  • a TV Futura, ligada à Fundação Roberto Marinho, exibiu um documento sobre a escola do MST em Dionício Cerqueira, em Santa Catarina, referindo-se à iniciativa como um exemplo de sucesso
  • o MST não permite que nenhuma criança assentada fique fora da escola e oferece a seus integrantes oportunidades de estudo que vão da educação infantil à pósgraduação, passando pela alfabetização de jovens e pela educação profissional
  • o MST tem mil jovens bolsistas em universidades e mais mil assentados em cursos de extensão
  • o MST já formou 150 pedagogos e outros 98 fazem cursos de magistério
  • o MST tem convênios firmados com 50 universidades públicas em diferentes Estados

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