Dezenove dias

Por Mauro Santayana, 5 de agosto de 2004. Há 50 anos, a morte do major Rubens Vaz iniciaria a mais dramática das crises republicanas brasileiras. Os que fomos testemunhas do cerco contra o Presidente não podemos acatar a versão dos vencedores. Na História, todo epílogo é um prefácio.
 

Há exatamente 50 anos, a morte do major Rubens Vaz, da FAB (Força Aérea Brasileira), iniciaria a mais dramática das crises republicanas brasileiras. Por mais confissões tenham sido feitas, mais memórias escritas, mais documentos exibidos, permanece, entre os que foram testemunhas daquelas três semanas, menos dois dias, muita coisa a ser aclarada, como ainda há que se aclarar a morte de Kennedy. Este colunista, já jornalista naquele tempo, acompanhou, dia a dia, até o embarque do corpo de Vargas para o Sul, os fatos. Primeiro, de Belo Horizonte, onde trabalhava; depois, da manhã do dia 24 ao fim da manhã do dia seguinte, no Rio de Janeiro. Os que vieram depois podem aceitar a versão dos vencedores daquelas horas, mas os que fomos testemunhas do cerco contra o Presidente não podemos acatá-la.

Ao candidatar-se, Vargas ouvira o aviso da fatalidade. Em entrevista à Folha da Noite, em plena campanha eleitoral (julho de 1950), disse o estadista:

“Conheço meu povo e tenho confiança nele. Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo. Terei de lutar. Até onde resistirei? Se não me matarem, até que ponto meus nervos poderão agüentar? Uma coisa lhes digo: não poderei tolerar humilhações”.


Mais adiante, na mesma entrevista, esclarece:

“Quero, ao morrer, deixar um nome digno e respeitado. Não me interessa levar para o túmulo uma renegada memória. Procurarei, por isso mesmo, desmanchar alguns erros de minha administração e empenhar-me-ei, a fundo, a fazer um governo eminentemente nacionalista. O Brasil ainda não conquistou a sua independência econômica e, nesse sentido, farei tudo para consegui-la. Cuidarei de valorizar o café, de resolver o problema da eletricidade e, sobretudo, de atacar a exploração das forças internacionais. Elas poderão, ainda, arrancar-nos alguma coisa, mas com muita dificuldade. Por isso mesmo, serei combatido sem tréguas. Eles, os grupos internacionais, não me atacarão de frente, porque não se arriscam a ferir os sentimentos de honra e civismo de nosso povo. Usarão outra tática, mais eficaz. Unir-se-ão com os descontentes daqui de dentro, os eternos inimigos do povo humilde, os que não desejam a valorização dos assalariados, nem as leis trabalhistas, menos ainda a legislação sobre os lucros extraordinários. Subvencionarão brasileiros inescrupulosos, seduzirão ingênuos inocentes. E, em nome de um falso idealismo e de uma falsa moralização, dizendo atacar sórdido ambiente corrupto que eles mesmos, de longa data, vêm criando, procurarão, atingindo minha pessoa e o meu governo, evitar a libertação nacional. Terei de lutar, se não me matarem”.


A República do Galeão

O major Vaz, ao trocar tiros com os pistoleiros, que, segundo vários depoimentos, queriam apenas assustar Lacerda – e ser atingido fatalmente –, não atuou como militar. Agiu como um correligionário político e amigo íntimo do jornalista da oposição. Apesar disso, os comandantes da Aeronáutica, com o apoio de altos oficiais do Exército e da Marinha, decidiram instaurar um “inquérito policial-militar” na Base Aérea do Galeão, que, em razão disso, passou a ser chamada de República do Galeão. Era a violação descarada da Constituição e dos regulamentos militares, que só prevêem inquéritos policiais-militares quando os oficiais e soldados estejam a serviço. Rubem Vaz não morrera como soldado, mas, sim, fora de seu horário de serviço e como guarda-costas afetivo de um político da Oposição. O crime deveria ser apurado pela polícia, que iniciou, no mesmo dia, o inquérito necessário.

Mas contra Vargas não se haviam levantado ilegalmente somente os companheiros do morto. Uma vasta conspiração tomou conta do país, alimentada por quase todos os jornais, com a exceção singular da Última Hora.

Vargas estava correto em sua premonição de quatro anos antes. Aos interesses estrangeiros se uniam os quislings nacionais, entre eles, Carlos Lacerda, festejado pelas elites pró-americanas e por setores enganados da classe média. O episódio mostra como a insensatez e o ódio são contagiosos. Intelectuais, que se tornariam sensatos nos anos seguintes, uniram-se no uivar da matilha contra o Presidente, como foi o caso de Alceu do Amoroso Lima. O grande pensador católico chegou a escrever um dos mais infames libelos contra o Presidente, quando o seu corpo ainda estava insepulto, sob o título de Sangue e Lama, no rodapé do Diário de Notícias, um dos jornais alinhados à antiga União Democrática Nacional – o partido das oligarquias reacionárias.

Nos Estados, os governos se reuniam em favor da nova ordem pró-americana e antinacionalista. Fora alguns políticos honrados, não se lamentava o trágico desfecho da crise, mas se saudava o grupo recém-chegado ao poder, formado pela minoria parlamentar e pelas personalidades ligadas a Lacerda. Só Juscelino, com a força de Minas, teve outra atitude. Em plena crise, Vargas visitara o Estado, a fim de inaugurar uma indústria siderúrgica, e passara a noite de 12 para 13 de agosto como hóspede do governador de Minas, em sua residência oficial. Naquela noite, eu soube depois pelo próprio Juscelino, Vargas dormira mal. Ouvindo ruídos na biblioteca, o governador de Minas encontrou Getúlio lendo A Imitação de Cristo, do monge Thomas Kempis, um manual de consolação religiosa.

O presidente Vargas que assumiu o cargo em 31 de janeiro de 1951 era o mesmo que governara de 1930 a 1945, e era outro. Era o mesmo em seu nacionalismo e no projeto de desenvolvimento nacional. Mas era outro, porque, eleito diretamente pelo povo, e não chegando ao poder pelas armas, tinha consciência de que teria que obedecer estritamente os fundamentos constitucionais, e assim o fez. Mas os interesses norte-americanos haviam se tornado ainda mais vorazes após a guerra. Dutra abrira o mercado nacional, ao assumir o governo em 1946, de uma forma que só seria suplantada por Fernando Collor e Fernando Henrique, meio século depois. O problema fundamental era o do petróleo, como continua sendo, com a agressão brutal ao Iraque. Os norte-americanos não admitiam que as jazidas brasileiras não viessem a ser exploradas por suas empresas, e apostaram todas as fichas em Carlos Lacerda, na UDN e em seus admiradores nos meios militares e políticos. Para os adversários de Vargas tudo era válido, até mesmo mistificar os conceitos e tentar opor “democracia” a nacionalismo. Democracia, para essas elites, continua ser um meio de ganhar dinheiro à custa do Estado e de manter-se no poder, mesmo como sócios menores dos estrangeiros.

O que Vargas previra, em julho de 1950, ocorreu nos últimos meses de seu governo, sobretudo depois de haver sancionado a Lei 2004, que instituiu o monopólio estatal da exploração, refino e distribuição do petróleo brasileiro – que só viria a ser quebrado por iniciativa do Sr. Fernando Henrique Cardoso. E sua carta-testamento (claramente identificada, na denúncia e no estilo, com o que dissera à Folha da Noite) foi o epílogo do imenso drama político e pessoal. Mas, na História, todo epílogo é um prefácio.
 

Mauro Santayana, jornalista, é colaborador do Jornal da Tarde e do Correio Braziliense. Foi secretário de redação do Última Hora (1959), correspondente do Jornal do Brasil na Tchecoslováquia (1968 a 1970) e na Alemanha (1970 a 1973) e diretor da sucursal da Folha de S. Paulo em Minas Gerais (1978 a 1982). Publicou, entre outros, “Mar Negro” (2002). Original da Agência Carta Maior
 

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