Sobre o Conselho Federal de Jornalismo
Álvaro Nascimento, agosto de 2004
 

Diante da polêmica surgida a partir da iniciativa do Governo Lula, ao propor um Projeto de Lei criando instâncias de regulamentação e controle ético da atividade jornalística, me sinto obrigado a me posicionar, até mesmo em respeito a amigos que estão me cobrando uma posição sobre o que a mídia tem tratado como uma tentativa de cerceamento da liberdade de imprensa e de opinião.

Todos que me conhecem são testemunhas de minhas críticas a algumas iniciativas macro-econômicas, no campo assistencial (ou assistencialista) e político do Governo Lula. Como cidadão, militante político, jornalista e profissional que trabalha com informação em saúde, não tenho me colocado "sobre muros" em relação a posições que sempre defendi e pessoas a quem sempre respeitei e até admirei, principalmente agora que são governo e exercitam o poder. Minha visão e participação crítica diante de grande parte das iniciativas do Governo Lula são conhecidas.

Na questão do projeto de Lei que cria o Conselho Federal de Jornalismo (CFJ), acho que é necessário deixar algumas coisas um pouco mais claras neste debate, que não deve de forma nenhuma ficar restrito aos interessados (o Governo de plantão, as empresas de comunicação e os jornalistas) e precisa ser urgente e amplamente debatido pelo conjunto de cidadãos e cidadãs interessados em um real avanço democrático neste setor.

1. Inicialmente, cabe esclarecer (já que as empresas de mídia sempre tentaram e continuam tentando esconder isso) que a criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) é uma antiga reivindicação dos jornalistas brasileiros (não confundir com as empresas de comunicação), que através de suas instâncias democráticas de representação (sindicatos de jornalistas de todos os estados brasileiros e da Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj) há décadas lutam pelo controle ético do exercício da profissão. Aliás, como ocorre com médicos, advogados, engenheiros, arquitetos, farmacêuticos, odontólogos, químicos, psicólogos e outras profissões consideradas de relevância social;

2. Estes Conselhos Profissionais não são (ou não deveriam ser) nem instrumento corporativo de defesa de profissionais (para isso existem sindicatos e associações) muito menos um órgão de Governo. Historicamente, a criação destes Conselhos (no Brasil e no mundo) é resultado da necessidade de se defender os interesses da sociedade, que necessita da existência destes instrumentos para se proteger.

Exemplo: um edifício precisa ser construído de acordo com normas técnicas determinadas pelo conhecimento acumulado pela engenharia. Para se assegurar que isso ocorra, o nome do profissional devidamente formado e responsável pela obra, seu registro (no caso, no CREA) e a regulamentação de sua profissão são exigências de caráter público, isto é, de proteção da sociedade contra pessoas ou empresas que por acaso queiram construir prédios inseguros. Da mesma forma, um medicamento precisa obter a chancela de um farmacêutico-responsável por aquela indústria para ser comercializado, não para garantir empregos a um número maior de farmacêuticos, mas também para não expor a população a risco.

Na mesma lógica, qual a proteção necessária à sociedade contra a manipulação, a omissão de dados, o jogo de interesses ou a pura e simples mentira de que ela é vítima quando um jornalista ou um meio de comunicação se utiliza de sua audiência para influenciá-la em benefício de interesses nem sempre confessáveis? Hoje simplesmente não há proteção.

3. Antes de ser um instrumento apenas de punição e cerceamento da "liberdade para trabalhar", a regulamentação das profissões foi criada justamente para, num só tempo, colocar os interesses da sociedade em primeiro lugar e garantir que profissionais devidamente habilitados e fiscalizados estejam exercendo as tarefas que a sociedade, através do Parlamento, determine que sejam consideradas de relevância para ela e que por isso mesmo merecem um tratamento diferenciado.

4. Tratando especificamente da regulamentação ética da profissão de jornalista, ela poderá servir não como um instrumento de "cerceamento da liberdade de informar", mas justamente o oposto, como uma plataforma ética mínima para que os jornalistas – com base nela – tenham um instrumento para dizer "não" aos excessos historicamente cometidos pelos meios de comunicação e dificilmente penalizados pela Lei Penal comum. Quando muito, com uma errata de pé de página (apelidado de "direito de resposta") após anos de processo judicial.

Mas que instrumento pode evitar que o crime seja cometido? A regulamentação proposta pelos jornalistas há anos e agora incorporada como Projeto de Lei pelo Governo Lula é, portanto, uma tentativa de proteger a sociedade contra os maus jornalistas e contra os interesses das empresas de comunicação, que lutam ferrenhamente contra qualquer tipo de controle ético e fiscalização justamente porque desejam permanecer como um "quarto poder" que verdadeiramente não são, na medida em que ninguém os outorgou nenhum poder a não ser eles mesmos, com seus interesses e objetivos nem sempre compatíveis com os da sociedade.

5. No recente Congresso Nacional dos Jornalistas, realizado em João Pessoa (PB), a notícia de que finalmente a proposta de criação do Conselho Federal de Jornalismo (CFJ) seria encaminhada ao Congresso na forma de Projeto de Lei foi ovacionada por mais de 500 delegados representantes de sindicatos de jornalistas de todo País, sendo apoiada por unanimidade.

Pergunta-se: será que toda a liderança sindical da classe jornalística do País quer ser cerceada? Passou a apoiar a censura? Deseja ser punida toda vez que escrever alguma matéria que atinja uma autoridade? Ou será que estas lideranças (historicamente comprometidas com as lutas pela liberdade de imprensa, de expressão, contra a censura) identificam na criação do CFJ uma instância capaz de trazer para o âmbito do jornalismo um pouco mais de seriedade, ética e compromisso social do que temos hoje?

Para provar o quanto os meios de comunicação deturpam as informações em seu próprio interesse, basta ver que, neste caso específico, dezenas e dezenas de matérias sobre o assunto foram irradiadas, televisadas e publicadas esta semana. Todas criticando o Projeto. Alguém ouviu falar ou leu uma só linha sobre o fato de mais de 500 jornalistas reunidos em Congresso terem apoiado a proposta? A exemplo do que aconteceu neste caso, em muitos outros a maior parte da mídia (salvo raras exceções) esconde, deturpa ou mente, tentando "convencer" a opinião pública a remar de acordo com a sua vontade e seus interesses e de seus apoiadores, que se espalham nas mais variadas áreas da economia (telecomunicações, siderurgia, transportes, construção civil, saúde, etc.). Quando não sai em defesa de interesses de grupos econômicos pelo simples fatos deles serem anunciantes de peso.

6. Criado o CFJ, vale ressaltar que (a exemplo do que ocorre com os demais conselhos já existentes) esta instância não terá nenhuma ingerência governamental, o que afasta qualquer possibilidade dele vir a ser um instrumento de censura e cerceamento de liberdades. Ele terá sua direção periodicamente eleita pelos próprios jornalistas, assim como ocorrerá com os conselhos regionais em cada estado (como também ocorre hoje em outras profissões).

7. É óbvio que há riscos no Projeto de Lei. As normas de conduta dos jornalistas – a exemplo do que ocorre em outras profissões – serão aprovadas pelo Congresso Nacional, que em última instância é a representação máxima da sociedade. Atrasado e conservador como é, o Congresso pode passar a exigir o impossível para que determinada denúncia venha a ser publicada, por exemplo. Pode querer condenar à prisão perpétua uma falha de menor importância. Pode querer ressarcir com um bem patrimonial do jornalista (sua casa, por exemplo) um erro de apuração, o que faria com que profissional nenhum quisesse arriscar sua casa por uma matéria. O Congresso pode, sim, querer fazer do Projeto de Lei uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos jornalistas.

Como resolver isso? Perpetuando a desregulação total e o verdadeiro "manda quem pode" existente hoje? A meu ver, o risco do Congresso aprovar uma regulamentação conservadora se resolve com o aumento da participação não só dos jornalistas, através de seus verdadeiros órgãos de representação (que não são as empresas jornalísticas onde trabalham), como da sociedade, maior interessada em ter à sua disposição um instrumento que lhe assegure, futuramente, uma verdadeira liberdade de imprensa, coberturas amplas e completas sobre o que está em jogo nas diferentes arenas nacionais e internacionais, manifestações de todas as correntes de opinião a cerca de temas de interesse nacional, enfim, a tão acalentada democratização dos meios de comunicação pela qual tanto lutamos. E não este arremedo de liberdade de imprensa que temos hoje, 15 anos após o retorno da democracia ao País.

8. Para os que ainda lutam por um jornalismo socialmente responsável, democrático, amplo, que reflita o conjunto de opiniões existentes na sociedade (para que não seja um mero leito onde corram os interesses do "mercado"), enfim, para quem enxerga a informação como algo com valor social real, assegurar que a ética se espalhe nas redações é essencial.

Diante disso, alguns podem se perguntar. Mas, então, todos os jornalistas que estão criticando o Projeto de Lei são vendidos à iniciativa privada? Ou estão sendo obrigados a criticar a iniciativa para não sofrerem retaliações nas empresas em que trabalham? Tentando responder a isso, que é uma das coisas de mais difícil resposta justamente porque "não há provas" do que efetivamente está ocorrendo (olhem só como a ética jornalística é importante), eu particularmente acredito que a saraivada de críticas que brota na mídia se explica, em parte, por jornalistas realmente "engajados" não apenas nos interesses das empresas em que trabalham, mas também no que interessa ao "mercado". Vários jornalistas que eu considero sérios estão criticando o CFJ. Mas a meu ver estão sendo, no mínimo, precipitados e, pior, atirando no alvo errado, já que não foi o Governo Lula que inventou o "patinho que eles acham feio", mas nós mesmos, os jornalistas. No mínimo, estão desinformados. O que no caso de nossa profissão é algo trágico. Outros criticam por puro desconhecimento do que realmente consta do projeto, ou seja, por ignorância. O que, infelizmente, tem estado cada vez mais presente entre jornalistas.

9. Para terminar, a meu ver existem pelo menos dois problemas sérios que podem inviabilizar o trâmite do Projeto de Lei. O primeiro é o momento em que foi proposto, quando o Governo Lula está tonto depois das denúncias envolvendo desde a Casa Civil (Waldomiro Diniz), ao Banco do Brasil (compra de ingressos para um show para angariar recursos para o PT) e vários dirigentes do Banco Central, inclusive o próprio Presidente do BC, por evasão de divisas, sonegação de Imposto de Renda (um terreno de 34 mil metros quadrados avaliado no Imposto de Renda do Meireles por R$ 1 é dose...) e outros crimes menos qualificados para quem é o "xerife" da moeda e clama para que os brasileiros mantenham cintos apertados e impostos em dia.

Pode parecer à sociedade que o Governo Lula quer mesmo calar denúncias. E nessa altura do campeonato - assistindo às últimas posturas do próprio Lula, de José Dirceu, Genoíno, Mercadante e outros menos cotados - eu próprio acho que, se pudessem, mandariam calar as matérias mais críticas contra o atual Governo. Este "ambiente" de corrupção e malversação de bens públicos pode contaminar o debate sobre o CFJ. Mas para este problema não há remédio, já que pelas alianças que formou, o Governo Lula vai ter que carregar estes fardos até 2006.

O segundo problema que poderá contaminar o trâmite do projeto no Congresso é o seu puro e simples aborto a partir do próprio Governo que o propôs. As pressões das empresas de comunicação, aliadas aos grupos econômicos que paulatinamente colocaram o Governo Lula como refém de seus interesses, têm feito com que as poucas iniciativas tomadas no sentido de implementar políticas defendidas historicamente pelo PT sejam simplesmente dinamitadas, na medida em que ferem os interesses da elite que perdeu a eleição mas continuou governando.

10. Para terminar de verdade, acho que o crescimento deste debate é essencial, porque um temporal ético e regulamentador interessa aos jornalistas e principalmente interessa à sociedade, que deve ter o mais amplo direito à informação, o que infelizmente a mídia, também no caso da criação do Conselho Federal de Jornalismo, não tem permitido.
 

Álvaro Nascimento, Jornalista da Fiocruz
 

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