Meios de comunicação
e espaços populares
Por Jailson de Souza, IBase, julho de 2004 Uma capa da revista Veja me acompanha há anos: ao lado da manchete "A periferia cerca a cidade", a imagem na qual construções de alvenaria, em cor escura – remetendo à visão de formigas saúvas em movimento –, vão devorando prédios brancos e limpos. O exemplo é ilustrativo do temor, atávico em amplos setores sociais do Rio de Janeiro e de outras metrópoles, de que o morro desça e a cidade seja dominada pelo caos. O conflito entre traficantes de drogas, denominado pela imprensa como "Guerra da Rocinha", ocorrido no Rio de Janeiro em abril/2004, corrobora esta assertiva: em primeiro lugar, a morte de uma motorista que passava de carro na ocasião do conflito teve muito mais destaque e desdobramento do que a morte de outras duas pessoas, na mesma ocasião. A diferença é que ambas moravam na própria Rocinha. Além disso, um conjunto expressivo de articulistas e leitores expressou clara postura de criminalização dos moradores da favela, localizada no espaço mais valorizado da cidade, pela violência entre os grupos traficantes. Eles reivindicavam o "direito de ir e vir" dos moradores da "cidade" – território no qual não se inclui a favela – e questionavam o direito de existência da comunidade popular no local onde se constituiu há mais de 70 anos. Situações como essas são exemplares do papel que a grande mídia tem exercido no sentido de instituir/reproduzir uma determinada representação dos espaços populares. A lógica pressuposta que caracteriza, de forma consciente ou não, a percepção dos setores sociais hegemônicos nos grandes meios de comunicação é de que o direito ao exercício da cidadania não é inerente ao nascimento do indivíduo no Estado-nação, conforme define a Constituição brasileira. O reconhecimento da cidadania é relativizado de acordo com a cor da pele, o nível de escolaridade, a faixa salarial e/ou o espaço de moradia dos residentes na cidade. O juízo se expressa, de forma particular, no menor ou maior grau de tolerância com as diferentes manifestações de violência, de acordo com o alvo da agressão e não com o ato em si. Um outro exemplo do tratamento
concedido aos pobres na grande mídia, em particular aos jovens,
é bem expresso pelo trecho de uma reportagem do principal jornal
carioca:
Principal alvo da violência urbana, jovens de comunidades carentes começam a encontrar em escolas dos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco a oportunidade de se afastar das drogas e do crime (O Globo, 08/04/01).
A estereotipia dos espaços favelados se faz presente não só na forma conservadora acima apontada como em uma forma pretensamente progressista. Na primeira forma, os moradores aparecem como criminosos em potencial e/ou como colaboradores de forças criminosas. Na representação progressista, os residentes em favelas, há algumas décadas, eram identificados por alguns setores sociais como bons favelados. O juízo estabelecia uma analogia com a visão romântica do bom selvagem, símbolo antimoderno de uma cidade racional e individualista. Embora essa idealização ainda se faça presente, tornou-se mais comum, dentre os que assumem a perspectiva identificada como progressista, sua identificação como vítimas passivas – e intrinsecamente infelizes – de uma estrutura social injusta. O que essas práticas expressam, na verdade, é a (re)afirmação de uma lógica individualizada no processo de resolução das demandas sociais, postura que dificulta a superação das dificuldades cotidianas presentes nos espaços populares. A justificativa social de atos criminosos e/ou que violam os direitos da coletividade sustenta-se, também, em uma visão monolítica das práticas afirmadas nos espaços populares, desconhecendo-se as múltiplas redes sociais neles presentes. Assim, a estereotipia progressista revela-se incapaz de oferecer alternativas ao discurso conservador, e é tão discriminatória quanto este. Sustentadas nesses tipos de representação, as intervenções institucionais encaminhadas nas favelas, em sua maioria – tanto do poder público como das acadêmicas –, caracterizaram-se pela ignorância e/ou idealização das estratégias, criativas, complexas e heterogêneas, efetivadas pelos atores locais no sentido de melhorarem sua qualidade de vida. As intervenções, em geral, desconheceram – ou mitificaram – os mecanismos de sociabilidade; de circulação na sociedade formal; de intervenção na vida pública; de compreensão das relações sociais, nos seus mais variados níveis; e, para não ser exaustivo, de interpretação das próprias situações de (sobre)vivência que os moradores foram produzindo historicamente. E, quando o fizeram, terminaram por isolar esse lugar do espaço urbano que ele também constitui. Com isso, terminaram por se apropriar e/ou apresentar tais vivências como se os cidadãos locais, seus vizinhos, fossem nativos. A exotização foi mais do que uma prática metodológica. Foi uma prática social. Os dois discursos, muito comuns nos meios de comunicação, ignoram a multiplicidade e diversidade de ações objetivas encaminhadas por diferentes atores dos espaços populares no processo de enfrentamento dos limites sociais e pessoais de suas existências. Os moradores das favelas, com efeito, não analisam suas vidas apenas a partir das noções de ausência e/ou negação. Da mesma forma, não reconhecem a violência existente em seu cotidiano de modo semelhante à concebida pela maioria dos setores dominantes e médios. Eles levam em conta também os aspectos afirmativos, integrantes de sua cotidianidade. Logo, a construção de outra representação das favelas, que possa se manifestar na mídia, faz-se necessária. Ela deve pressupor que os moradores dos espaços populares desenvolvem formas ativas e contrastantes para enfrentar suas dificuldades do dia-a-dia, de acordo com suas trajetórias pessoais e coletivas, as características socioculturais e geográficas da localidade, o peso do tráfico de drogas e a postura assumida pelos dirigentes das entidades comunitárias, dentre outras variáveis. Afinal, as pessoas inventam múltiplos mecanismos para ter uma vida cotidiana mais feliz e intensa, em um quadro de dificuldades que não é ignorado, mas enfrentado de forma criativa e, sem dúvida, muitas vezes, sofrida. Na verdade, a superação dos evidentes limites presentes nas condições de vida dos grupos sociais populares só ocorrerá quando forem reconhecidas as múltiplas riquezas presentes em seu cotidiano. E isso só será feito no processo de constituição de uma nova hegemonia no campo dos meios de comunicação de massa. O caminho é longo, mas a caminhada já começou, há muito tempo, e continua. fonte: www.ibase.org.br
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