Shrek e o futuro dos atores
de Hollywood
O filme de Andrew Adamson, Kelly Asbury e Conrad Vernon aperfeiçoou a animação de personagens humanos. Ao mesmo tempo, atores reais ficaram fora de cena, dublando seus colegas desenhados. Há quem diga que a profissão vai perder empregos para atores virtuais. Por Sérgio Domingues, julho de 2004 "Shrek 2" é o mais recente sucesso em desenho animado. Esse tipo de atração ganha cada vez mais o tamanho e o prestígio das grandes produções. Provavelmente, o ogro que protagoniza o filme estará na próxima cerimônia do Oscar anunciando um vencedor ou indo, ele mesmo, receber um dos prêmios. São vários os elementos responsáveis por esse sucesso. Um deles é o roteiro muito bem amarrado, inteligente e sabendo dialogar com um público mais homogêneo. São crianças cada vez mais maduras, em termos de sexualidade, violência, consumismo e adultos aparentemente mais infantilizados, no sentido de querer diversão fácil e evidente. Mas a qualidade das animações também deve ser apontada como um elemento importante. O princípio do desenho animado é o da ilusão que a seqüência rápida de imagens causa em nossos olhos. No entanto, este também é o princípio do cinema em geral. Filmes nada mais são do que centenas de milhares de fotografias exibidas em alta velocidade. Ou, na era digital, trilhões de pontos de luz apagando e acendendo. A diferença é que com desenhos animados, desde as primeiras e precárias realizações de Disney, a fantasia corre mais livre. Seus personagens sobrevivem a quedas em abismos. Ficam inteiros mesmo quando são eletrocutados, cortados em pedaços, queimados, decapitados e pulverizados. Andam no ar, voam, atravessam paredes, viram do avesso. Tudo isso também pode acontecer em filmes com atores de verdade, mas para tornar mais convincentes estas situações, os diretores precisam lançar mão de efeitos especiais que utilizam, principalmente, técnicas de animação. Mas por que será que a animação ganha tanto espaço no mundo atual? A "Bela e a Fera", da Disney, é um desses enormes sucessos em animação. Nele, o mesmo feitiço que transformou o príncipe em um monstro, fez de sua criadagem peças de mobília. Guarda-roupas, castiçais, relógios, xícaras, falam, cantam e dançam. Marx e a mesa que dança Esses móveis andando por conta própria lembram o famoso trecho de "O Capital", em que Marx fala sobre o fetichismo da mercadoria. Ao se referir à transformação de coisas produzidas por mãos humanas em mercadoria, Marx diz que "o ser humano (…) modifica, por exemplo, a forma da madeira quando dela faz uma mesa (…). A mesa ainda é madeira, coisa prosaica, material. Mas, logo que se revela mercadoria, transforma-se em algo ao mesmo tempo perceptível e impalpável. Além de estar com seus pés no chão, firma sua posição perante as outras mercadorias e expande as idéias fixas de sua cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por iniciativa própria". Para entender essa imagem da mesa dançando, é preciso compreender o que Marx chamou de fetichismo da mercadoria. Grosso modo, fetichismo da mercadoria seria o fato de que as pessoas sob o capitalismo se conhecem e se relacionam através das mercadorias. Com exceção de nossos parentes, todas as outras pessoas com quem nos relacionamos são parte do processo de circulação da mercadorias. Podemos conhecer o fulano do açougue em frente, mas primeiramente o conhecemos como vendedor da mercadoria carne. Lembramos do ciclano da padaria da esquina antes de tudo como o vendedor de pão. Quanto a nossos amigos, conhecemos muitos deles porque vendiam ou vendem sua força de trabalho na mesma fábrica, banco, escola etc em que vendíamos ou vendemos a nossa força de trabalho. Desse modo, se o açougue fechar ou um colega for demitido, as chances de perdemos contatos com quem tínhamos relações de amizade são grandes. Por outro lado, se as mercadorias é que são as ligações entre nós, são elas que estabelecem relações entre si. Elas é que têm vida social, não nós. Ou seja, as pessoas se relacionam através das mercadorias e as mercadorias através das pessoas. É esta inversão que Marx chama de fetichismo, pois no fetichismo religioso as coisas ganham movimento próprio e dominam a vida dos seres humanos. E esta é a realidade social que vivemos, gostemos ou não. Pelo menos, enquanto durar o domínio do capital. À medida que as relações capitalistas foram se impondo, essa forma de percepção da realidade também foi se impondo. Então, nada mais fácil de assimilar do que desenhos animados. Eles são traços que se movem e contam com uma técnica que se aperfeiçoa rapidamente, nos permitindo ver coisas se mexerem de forma cada vez mais convincente. Por outro lado, há um esforço em aperfeiçoar a imitação do próprio ser humano. Em 2001, foi lançado o filme de animação "Final Fantasy" com atores virtuais bastante realistas. Houve até uma polêmica na época sobre a possibilidade substituírem-se definitivamente atores reais por imagens digitais. Mas, a qualidade da animação somente poderia ameaçar o emprego de atores inexpressivos, como Schwarzenegger ou Stallone. Já em "Shrek 2", a qualidade melhorou muito. As expressões estão mais naturais. Volta a ameaça ao emprego de atores e atrizes? O sapateiro e um Tom Hanks virtual Muitos atores de Hollywood já estão saindo de cena para dublar personagens desenhados. Em "Shrek", há, por exemplo, Eddie Murphy, John Cleese e Cameron Diaz. Mas não é só isso. Um longa-metragem animado chamado "The Polar Express", de Robert Zemeckis, está sendo preparado para ser lançado em dezembro. O trailer mostra um personagem desenhado que não passa de um Tom Hanks virtual. Os próprios atores começam a ser substituídos por dublês digitais. Podemos fazer idéia do que pode significar isso do ponto de vista de economia de custos com os salários dos atores e demais trabalhadores dos estúdios. É verdade que a utilização dos programas e equipamentos de informática necessários para viabilizar essas complexas animações deve ter custo elevado. Mas, não deve chegar nem perto dos gastos com cenários, instalações, maquiagem, figurino, gravações em locais distantes etc. Trata-se do mesmo processo que vem acontecendo com outros setores do mundo do trabalho. No início do capitalismo, um empresário de calçados, por exemplo, dependia do saber e do ritmo de trabalho do sapateiro que trabalhava para ele. Marx chamou isso de subordinação formal dos trabalhadores ao capital. Quando as primeiras máquinas começaram a fabricar sapatos, aquele saber do sapateiro já havia sido incorporado a elas. À medida que as máquinas fabricavam sapatos mais rápida e integralmente, mais os trabalhadores envolvidos na fabricação de calçados deixavam de ser sapateiros. Tornavam-se ser meros operadores de alavancas, produzindo no ritmo das máquinas. É o que Marx chamava de subordinação real dos trabalhadores ao capital. Antes, esse tipo de subordinação acontecia mais entre os trabalhador braçais das fábricas. Hoje, ela já chegou aos trabalhadores que usam mais a mente do que a força física. É o caso dos caixas eletrônicos. Essas máquinas substituem os bancários e bancárias. O conhecimento necessário para contar dinheiro, efetuar um pagamento, dar troco, fornecer saldos e extratos foi incorporado pelos caixas eletrônicos, à custa do emprego de centenas de milhares de pessoas. O desastroso aprendiz de feiticeiro Por outro lado, essa transformação do trabalho vivo em trabalho morto cristalizado em objetos chamados máquinas não acontece apenas devido ao desenvolvimento tecnológico. A origem da utilização de objetos para substituir o trabalho de pessoas está exatamente no tal fetichismo da mercadoria a que Marx se referia. Trata-se do fato de que as mercadorias aparecem desvinculadas do trabalho que as criou. Quando enxergamos uma cadeira vemos a cor dela, mas não o trabalho de quem a pintou. Sua madeira, e não o trabalho de quem derrubou as árvores, serrou as toras, cortou os caibros, moldou as peças, as encaixou e colou. O que vem acontecendo no cinema parece ser o mesmo processo. Qualquer filme aparece pronto. Tal como no caso da cadeira, dificilmente vemos nele muito mais do que o trabalho dos atores e atrizes. Mal pensamos no restante da equipe que o produziu. Mas, com o avanço das animações, até algo tão especial e subjetivo como o trabalho da atriz e do ator já pode ser trocado pela atividade de máquinas, sem causar grandes reações. Isso significa que as profissões de atriz, maquiador, contra-regra, etc vão acabar? Não necessariamente. Afinal, as profissões de bancários e operários em geral não acabaram. Apenas empregam bem menos trabalhadores que antes. Ao mesmo tempo, os que não são demitidos passam a cumprir enormes e cansativas jornadas de trabalho. E isso acontece porque o capitalismo precisa explorar trabalho vivo para gerar lucros. E o trabalho incorporado nas máquinas é trabalho morto. O capitalismo não consegue se livrar de sua necessidade explorar pessoas. Mas está sempre tentando. E ao fazer isso, expulsa trabalhadores de suas ocupações. Nem mesmo os atores de Hollywood estão livres de verem suas chances de trabalho diminuírem. São as contradições batendo no traseiro do centro mundial de divulgação da ideologia burguesa. É como no famoso episódio da animação "Fantasia", da Disney. O capitalismo tenta controlar suas contradições do mesmo modo que o aprendiz de feiticeiro Mickey tenta dominar as forças mágicas que pôs em movimento. No desenho, os esforços do aprendiz acabam em desastre. Sérgio Domingues -
Julho de 2004
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