Mordaças disfarçadas
Há muitas formas de impedir a livre divulgação de notícias

Por Juliana Borges e André Campos, março de 2004 (Publicado na revista Problemas Brasileiros, do Secs-SP, edição março-abril/2004)

Liberdade de imprensa e não interferência de poderes externos nas redações sempre foram duas das principais bandeiras defendidas pelos meios de comunicação brasileiros. Tanto é que, toda vez que uma pessoa ou empresa consegue impedir na Justiça a publicação de determinada reportagem - a chamada censura prévia ou judicial, prática cada vez mais freqüente no país -, a mídia costuma fazer ampla cobertura do assunto.

A censura, porém, que nasce dentro das revistas, jornais, emissoras de rádio e TV, permanece cercada do mais completo silêncio. Casos de assuntos e reportagens abafados devido a interesses políticos e econômicos das empresas jornalísticas são realidade em todas as grandes redações. No entanto, esse tema recebe contornos de tabu e segue sem ser discutido nem mencionado.

Existe ainda no jornalismo uma outra forma de censura, anterior àquela imposta pelos patrões e pelos interesses econômicos. É a praticada pelo próprio jornalista, que, consciente ou inconscientemente, barra assuntos que possam desagradar a seus superiores apenas para não criar problemas. Independentemente da origem e das causas, a censura priva a população do livre acesso à informação e, por isso, deveria ser discutida abertamente na sociedade brasileira.

Em janeiro de 1993, o jornal "Notícias Populares" decidiu "revelar o maior segredo do país", numa série de reportagens sobre os acontecimentos do dia em que um trem passou por cima da perna do cantor Roberto Carlos.

Apenas três matérias da série de oito foram para as bancas. Na quarta, a capa do jornal estampou um quadrado preto onde se lia "censurado". Os advogados do cantor conseguiram na Justiça proibir o diário de publicar quaisquer outros detalhes de sua vida.

Na década de 90, esse foi um caso isolado na Justiça brasileira. Porém, a partir de 2000, o número de liminares que impediam a publicação de reportagens se multiplicou. A revista Problemas Brasileiros levantou alguns casos semelhantes e constatou que a censura prévia é um grande ponto de discórdia entre juristas, advogados e jornalistas.

Regime de riscos

Os desentendimentos começam com a própria designação "censura prévia". Enquanto alguns repelem essa prática, outros nem mesmo consideram censura o ato de impedir a publicação de uma reportagem por meio de ação liminar. É o que afirma, por exemplo, o desembargador Jirair Meguerian, que, em outubro de 2002, concedeu uma liminar que proibiu o jornal "Correio Braziliense" de publicar qualquer matéria com citações de trechos de uma gravação telefônica que envolvia o então governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz, num escândalo de grilagem de terras. Segundo ele, esse ato - que ele chama de "vedação" - é não apenas válido, como balizado pela Constituição.

Luiz Antônio Marrey, procurador-geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo, discorda de Meguerian. Ele não só utiliza o termo "censura prévia" como combate essa prática publicamente. O procurador é taxativo: "É claro que existem muitas matérias irresponsáveis no jornalismo brasileiro, mas isso não justifica a adoção de censura prévia. A democracia é um regime de riscos, e é sempre melhor assumir o risco da sanção a posteriori".

Quando se fala em censura judicial, o eixo de discussão se estabelece em torno de dois princípios básicos previstos no artigo 5º da Constituição Federal: a liberdade de expressão e o direito à privacidade e à defesa da honra.

Aqueles que são expressamente contra essa prática acreditam que o primeiro valor predomina sobre o segundo. "A liberdade de imprensa é um direito coletivo, enquanto a defesa da honra é um direito individual. Os interesses de um único indivíduo não devem prevalecer sobre os da sociedade", defende Taís Gasparian, uma das sócias do escritório Rodrigues Barbosa MacDowell de Figueiredo Advogados, que presta serviços a diversas empresas jornalísticas e repórteres.

Por outro lado, os que defendem esse tipo de intervenção judicial nos meios de comunicação argumentam que cabe à Justiça evitar possíveis abusos da mídia. "O equilíbrio entre a liberdade de informação e a defesa da honra pressupõe a atuação do Poder Judiciário. Não como censor, mas como verificador do que seja de interesse da coletividade", afirma o desembargador Nívio Gonçalves.

Em 22 de outubro de 2002, ele proibiu o "Jornal de Brasília" de publicar qualquer reportagem que envolvesse o nome do político Geraldo Magela com o recebimento de dinheiro para regularização de condomínios. Cinco dias antes, Gonçalves tinha se pronunciado contra a decisão de censura do colega Meguerian ao "Correio Braziliense", no episódio já mencionado. No seu entender, no caso do "Jornal de Brasília", havia indícios expressivos de que o periódico exorbitara de seu dever de informar.

Situações como essa oferecem munição aos críticos da censura prévia, que vêem incoerência em decisões de membros do Judiciário relativas à questão. Além disso, o atual estágio do relacionamento entre a imprensa e a Justiça indica que pode haver muito mais do que uma simples discussão jurídica em jogo. Segundo levantamento do site Consultor Jurídico, realizado em cinco grandes empresas jornalísticas do país, os juízes destacam-se como a classe profissional com o maior número de processos contra jornalistas e veículos de comunicação.

Chico Otávio - repórter do jornal "O Globo" proibido em 2001 pela Justiça de publicar matéria que apontava fraudes em negócios particulares do então governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho - acredita que a atual situação de intenso atrito da imprensa com a lei está gerando também um perigoso quadro de autocensura nas redações.

Em dezembro de 2002, o juiz Antônio Dimas concedeu uma liminar que proibia a revista "Você S/A", da Editora Abril, de publicar matéria sobre irregularidades no mercado de recolocação profissional. A requerente da ação, a Dow Right Consultoria em RH, exigia que a reportagem só fosse veiculada se incluísse um texto assinado pela empresa com a sua versão sobre o caso, numa espécie de direito de resposta imediato. "É uma regra básica da Abril não mostrar as matérias antes que sejam publicadas, então não aceitamos as condições", afirma Maria Tereza Gomes, diretora de redação da "Você S/A". "A versão da Dow Right só iria enriquecer a reportagem", rebate o juiz.

Dimas baseou sua decisão apenas na possibilidade de a reportagem ferir interesses de uma empresa. Para ele, não cabia, num primeiro momento, o julgamento do mérito da questão. Em março de 2003, a "Você S/A" conseguiu, na Justiça, o direito de publicar a reportagem na íntegra, sem interferência da Dow Right. Em setembro, a empresa abriu um processo contra a Editora Abril.

Para os opositores da censura prévia, a preocupação com o aumento dos casos vai além das conseqüências isoladas que eles podem trazer para empresas jornalísticas e sociedade. O medo maior é que novas decisões que proíbam a publicação de reportagens ajudem a legitimar a prática dessa modalidade de interferência do Estado nos órgãos de imprensa. O caso de Roberto Carlos abriu precedente para esse tipo de pensamento, e ocorrências semelhantes colaboram para reafirmar essa idéia.

Escândalos abafados

Mais complexa e velada que a judicial, a censura que ocorre dentro das redações é também mais difícil de ser discutida. Primeiro porque, quase sempre, seu autor tem meios de "justificá-la", já que qualquer assunto pode ser barrado num veículo sob a alegação de que não condiz com sua "linha editorial". Segundo, porque não é fácil de ser comprovada. E, por fim, porque pouquíssimos profissionais do meio estão dispostos a abrir o jogo.

Com receio de perder o emprego, a grande maioria evita falar publicamente do assunto. Problemas Brasileiros entrou em contato com jornalistas de diferentes publicações e encontrou três dispostos a contar suas histórias.

Conhecido por seu temperamento explosivo, Claudio Tognolli, repórter especial da rádio Jovem Pan e colaborador dos sites Consultor Jurídico e "Observatório da Imprensa', já trabalhou em diversos veículos da mídia. Fala abertamente de grandes tabus do jornalismo, escândalos abafados e matérias censuradas. "Por isso, sou vetado em algumas empresas jornalísticas. Mas, como sempre tenho em mãos um material diferenciado, consigo me manter vivo na profissão", diz. Em sua carreira, Tognolli já teve algumas matérias censuradas.

Um dos casos aconteceu na "Veja", em 1987, quando a revista era dirigida por Elio Gaspari e José Roberto Guzzo. "Recebi uma lista de nomes de pessoas que lavavam dinheiro na Bolsa de Valores de São Paulo, em uma operação chamada Day Trade (compra e venda de ações no mesmo dia). Entre os personagens envolvidos estavam integrantes da família Mesquita (dona do Grupo Estado) e um genro do ACM (Antonio Carlos Magalhães), que era sócio da construtora OAS." Segundo Tognolli, a matéria chegou até a ser paginada, mas não foi publicada. "Não me falaram o motivo, mas ele sempre acaba vazando. Descobri que foi derrubada por ACM", conta o jornalista. "Em um ano que trabalhei na 'Veja', vi o político na sala dos diretores no dia do fechamento da revista pelo menos três vezes." Procurados pela reportagem, Gaspari alegou não conceder entrevistas e que, por isso, não comentaria o caso, e Guzzo, que estava fora do país, como informou sua secretária, não entrou em contato com a revista.

Tognolli afirma que, no mesmo período, recebeu também uma proposta de suborno de um entrevistado, numa situação que ainda o levou a ter membros de sua família ameaçados. "Investiguei um caso de fraude no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) e um dos envolvidos, Milton Milreu, tentou me comprar. Ele disse que me daria US$ 10 mil para eu não publicar a matéria. Deixei em aberto porque queria voltar e gravar o cara me dando a grana. Mas meu editor falou para eu esquecer o assunto. A matéria nunca saiu."

Georges Bourdoukan, um dos criadores do "Globo Repórter" e chefe de reportagem do programa nos anos 70, conta que conviveu com a censura. Não só a militar, mas também a empresarial. Tráfico de órgãos, poluição em Cubatão (SP) e a prisão do então líder sindical Lula são algumas gravações que deixaram de ir ao ar.

A ousadia em tratar certos assuntos acabou cobrando seu preço. Em meados da década de 80, no auge de sua popularidade, a direção da Rede Globo tirou o "Globo Repórter" do ar por alguns meses e demitiu sua equipe. "Foi pressão das multinacionais ligadas à área de produtos químicos. Imagina só o que é acabar com um programa que dava 70 pontos de audiência", exclama.

"Fizemos uma série de reportagens ecológicas onde mostrávamos que os chamados defensivos agrícolas eram, na verdade, veneno. As empresas se juntaram, conversaram com a emissora e acabaram com o 'Globo Repórter'. Na mesma época, foi criado o 'Globo Rural', com todo esse pessoal patrocinando", explica Bourdoukan. Armando Nogueira, diretor do Núcleo de Jornalismo da Globo na época, e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que era o responsável pela programação da emissora, foram procurados e não se manifestaram sobre o assunto.

Não foi só na Rede Globo que o jornalista teve problemas com a censura. Ele afirma que, quando trabalhou na TV Cultura, em 1974, havia orientação da Fundação Padre Anchieta para não serem veiculadas imagens de pessoas negras ou feias. "Por feio, entenda-se pobre."

Bourdoukan, que abandonou a profissão de jornalista por opção e hoje é escritor, tem uma visão muito crítica sobre a censura na mídia. "Não existe liberdade de informação no sistema capitalista", afirma.

Anéis e dedos

"A censura oficial acontece bem menos do que as pessoas imaginam. Eu mesmo sofri duas ou três vezes. O que ocorre cotidianamente é a censura pequena, imposta pelos editores, justificada por outros motivos, que todo dia diz 'não' a pautas importantes", relata o jornalista Leonardo Sakamoto, que há cerca de dois anos e meio criou a ONG Repórter Brasil, uma agência de jornalismo que procura retratar populações, pessoas e lugares do Brasil ignorados pela grande imprensa. "Cansei de ouvir que pobre não era pauta, que falar de miséria não era do interesse editorial da revista. É claro que isso é uma forma de censura", afirma ele.

Para Sakamoto, não apenas as empresas jornalísticas, mas também os próprios profissionais da mídia, que adotam uma postura passiva, são responsáveis por essa situação: "Se os repórteres não aceitassem ter suas matérias censuradas e brigassem pela publicação de assuntos que julgam importantes, haveria uma mudança nos grandes temas. Mas a maioria dos jornalistas prefere ceder os anéis para não perder os dedos e deixa passar quase tudo. Se um não fizer o trabalho sujo, tem dez querendo fazer no lugar dele".

Sakamoto conta que, em 2001, o programa que apresentava na TV USP - "Delta Pi" – foi censurado pela Coordenação de Comunicação Social da universidade. O órgão, vinculado à reitoria da Universidade de São Paulo e responsável pela programação da emissora, proibiu que um debate sobre o Provão fosse ao ar. Insatisfeito com a decisão, o jornalista demitiu-se da emissora.

O atual cenário de crise econômica que atinge a indústria da comunicação torna ainda mais relevante discutir a censura. Para Otavio Frias Filho, diretor de redação da "Folha de S. Paulo", as dificuldades financeiras enfrentadas atualmente podem afetar a autonomia jornalística de veículos da mídia.

A relação entre anunciantes e o que é publicado na mídia é outro grande entrave para a consolidação da independência editorial de um veículo. "Para sobreviver, o patrão precisa do anúncio. E, ao aceitá-lo, ele necessariamente vai fazer concessões", observa Bourdoukan. Bernardo Ajzenberg, ombudsman da "Folha de S. Paulo", tem opinião diferente. "Não vejo isso acontecer, por exemplo, na 'Folha', a não ser muito episodicamente", diz. Para ele, a própria competição por leitores e audiência evita essa realidade. Frias afirma que, ao menos em seu jornal, vigora uma rígida separação entre redação e publicidade.

Na verdade, por mais que se queira buscar a livre informação como ideal, a imprensa, para sobreviver, depende de um bom relacionamento com forças econômicas e políticas. Por essa razão, certamente terá sempre enormes dificuldades para se ver livre de influências externas, ainda mais quando todas as grandes empresas da mídia estão endividadas.

A questão, porém, é mais complexa do que parece à primeira vista e não pode ser encarada sob uma ótica romântica, que transforma patrões em senhores maquiavélicos e repórteres em vítimas de opressão. A censura nas redações é diária. No entanto, pode ser muito mais sutil e velada do que a oficial. Como afirma Sakamoto, ignorar a existência do pobre e do excluído é um exemplo de censura disfarçada. E de um tipo ainda mais grave. Porque pior do que barrar um assunto na imprensa é nem considerar que ele existe.

Receita portuguesa

Para evitar que a mídia informativa submeta seu conteúdo a interesses políticos e empresariais, alguns países europeus investiram no desenvolvimento de legislação mais democrática e com mecanismos que permitam maior participação da sociedade civil.

Em Portugal, emissoras de rádio e TV são obrigadas, através da "lei de antena", a disponibilizar espaços na grade horária para organizações profissionais, de proteção do meio ambiente e de defesa do consumidor, entre outras. Além disso, a lei portuguesa determina que o conselho editorial dos jornais tenha metade dos membros indicada pelos jornalistas que trabalham no veículo. "É um mecanismo que ajuda a garantir pautas com preocupação informativa, e não só relacionadas aos interesses econômicos do jornal", afirma Vidal Serrano, promotor de Justiça de São Paulo e autor da tese "A Proteção Constitucional da Informação e o Direito à Crítica Jornalística".

O número de políticos que possuem concessões de rádio e TV é um exemplo da falta de garantias que a legislação brasileira oferece para a independência informativa da mídia nacional. Levantamento feito em 2001 pela assessoria técnica do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados revela que políticos detêm 77% das concessões de rádio e TV do país. Segundo a procuradora Eugênia Fávero, "os critérios subjetivos utilizados no processo de cessão das concessões permitem essa distorção".

Em contraposição ao silêncio existente no Brasil em relação à censura, países vizinhos ao nosso possuem espaços de discussão que contribuem para a reflexão e desmistificação do problema. O Instituto Prensa y Sociedad, com sede no Peru, montou amplo foro de debate online sobre a censura empresarial e política e a sua ocorrência em diversos países latino-americanos. O instituto também coleta informações sobre casos de censura empresarial a ser investigados. Denúncias podem ser enviadas para o site da instituição (www.ipys.org).