E se a Globo produzisse petróleo?
Sérgio Domingues, março de 2004 Este é um texto de provocação. A Globo poderia ser o equivalente à poderosa companhia petroleira venezuelana? Sim. E o governo de Lula? Seria igual ao de Chávez? Não. Isso é bom ou ruim? Depende de nós. Imaginemos a seguinte situação. Daqui a uns 8 meses, o governo Lula vê-se cada vez mais acuado pela crise econômica. A reforma agrária é tímida, o crescimento econômico é insuficiente para estancar o desemprego e recuperar o valor dos salários. Investimentos, só os do exterior. Mesmo assim são especulativos e instáveis. A qualquer sinal de crise política, o dinheiro foge do país. Multiplicam-se as greves e conflitos no campo. A violência nas cidades explode, alimentada pelo desemprego, pelos salários em queda, pelas famílias que chegam do campo todos os dias. A desigualdade é cada vez maior. Enquanto isso, empresários, fazendeiros, latifundiários, patrões em geral, querem “tudo ao mesmo tempo agora”. Crescimento econômico, estabilidade política, repressão aos movimentos sociais, respeito aos contratos com o FMI e credores internacionais. Dentre esses patrões descontentes, estão aqueles da grande mídia. Tevês, rádios e jornais. E no meio destes, estão as poderosas organizações Globo, que ajudaram a vender ilusões sobre o Plano Real, mas também foram vítimas delas. A Globo endividou-se em dólar. Investiu pesado na tevê a cabo e em telecomunicações. O preço do dólar triplicou no final do governo FHC, aumentando as dívidas da Globo na mesma proporção. O encolhimento dos salários e dos postos de trabalho a partir de 1998 acabou com qualquer chance de crescimento no setor da televisão paga e telefonia. Resultado: as organizações Globo respondem por 60% do total de R$ 10 bilhões devidos pelo setor de mídia brasileiro. Outro resultado: a boa vontade com que a Globo vem tratando o ex-metalúrgico, antigo inimigo e atual presidente, Luis Inácio Lula da Silva. É que o governo federal é responsável pela metade dos gastos em publicidade nos veículos globais. Herança da ditadura, que ninguém mudou. Além disso, o setor todo está louco por um PROER das telecomunicações. Recentemente, foi providenciada uma alteração nas regras de financiamento do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) que abre uma brecha para empréstimos às empresas da grande mídia. Mas digamos que por uma razão ou outra, os recursos não sejam liberados no volume desejado pelos tubarões das comunicações. Mais crise. Só que dessa vez, com um dos setores mais poderosos do país. Não apenas pelo tamanho de suas empresas, pelo volume de investimentos que movimenta. Mas pela enorme influência ideológica que exerce. Trata-se do maior complexo de televisão da América Latina, instalada num terreno de mais de um milhão de metros quadrados, no Rio de Janeiro. Conta com programas exibidos não só no Brasil. A Globo exporta seus programas para mais de 60 países, da Rússia ao México, da Grécia ao Canadá. É a quarta rede de televisão do mundo. Já imaginaram esse poder todo voltado contra um governo? Já imaginaram os programas jornalísticos, de auditório, as novelas, os humorísticos. Tudo isso bombardeando dia e noite o governo Lula? Lá, a PDVSA é
a grande mídia. Aqui, a grande mídia é a Globo
Pois bem, uma das origens das insistentes tentativas de derrubar Hugo Chávez é precisamente uma briga que este comprou com a direção da empresa. É uma estatal. Deveria responder ao governo por seus atos. Mas, isso não acontece. A PDVSA foi apropriada por seus dirigentes. Sua enorme capacidade de produção beneficia no máximo 30% dos venezuelanos. O restante morre de fome sobre bilhões de barris em reservas petrolíferas. Quando Chávez assumiu, em 98, tentou mudar essa situação. Mas, foi somente no final de 2001 que aprovou um pacote de leis. Entre elas, uma lei de terras, outra sobre a pesca e a que diminui o poder dos dirigentes da estatal petroleira. Começa a reação. Os poucos privilegiados pela produção da PDVSA estão na vanguarda. No dia seguinte à aprovação das leis, a federação dos patrões e a CTV, central sindical pelega, se unem e chamam uma greve geral. A crise piora quando Chávez demite sete altos executivos da companhia PDVSA, em abril de 2002. Vem o golpe. Um golpe sem tanques. Na base do quase total monopólio da grande mídia pelo setor privado. O povo reage. Vai às ruas. Fura o bloqueio da mídia. Exige o retorno de Chávez. O resto, já sabemos. Voltemos ao exemplo da Globo e do governo Lula. E se Lula, cansado, dos ataques da grande mídia contra seu governo resolvesse cortar a verba publicitária oficial da Globo? Se assumisse a dívida do grupo em troca de seu controle? Àqueles que argumentassem que se trata de ataque à liberdade de imprensa, o governo responderia com a utilização do enorme aparato tecnológico e criativo da poderosa rede para democratizar seu conteúdo. Para regionalizar a programação, dar espaço à produção popular, sindical e política dos de baixo. Preservar e divulgar a cultura do povo e exercer papel educativo. Cumprir aquilo que a Constituição determina, mas a grande mídia nunca fez. A quem dissesse que isso seria atacar a livre empresa, responderia com a lei. A lei que faz da Globo uma concessionária pública. Tal como a petroleira venezuelana, a Globo deve satisfações à sociedade na forma de seu representantes eleitos, no parlamento e no governo. Seria bom, não seria? Mas improvável. Muito improvável. Chávez ou Lula, a
reação tem que ser de baixo pra cima
Lula representa um governo de continuidade quase total. Não houve mudança de regime. Sua base de apoio parlamentar inclui praticamente todos os partidos que sustentavam o governo anterior. Chávez está em confronto com a burguesia de seu país devido a suas medidas democratizadoras. Lula desagrada o setor empresarial brasileiro porque sua política beneficia o setor financeiro. O governo de Chávez foi o único a votar contra a ALCA na reunião de Monterrey, em janeiro passado. O governo petista acaba de aprovar o envio de tropas brasileiras para liderar as forças de ocupação no Haiti. Na verdade, mais uma intervenção do imperialismo norte-americano em países pobres. Paremos por aqui. O objetivo deste texto é o de fazer pensar sobre o caráter do governo brasileiro e as contradições que está provocando. Não se trata somente de fazer elogios a Chávez. Seu governo assumiu um perfil mais radical devido a uma série de circunstâncias históricas e políticas próprias da Venezuela. Houve momentos no enfrentamento de Chávez com a burguesia em que um verdadeiro poder popular revolucionário poderia ter se instalado. Mas, Chávez não quis e o movimento popular não pôde. Chávez não quis porque não é um revolucionário. É um reformista radical, ainda que empolgue a todos nós. O movimento popular não pôde porque não encontrou caminhos próprios. Também não se trata de condenar o governo Lula de uma vez por todas. Lula foi eleito no vazio criado pela falta de alternativas da burguesia. Isso dá a seu governo limites muito maiores do que os enfrentados por seu colega venezuelano. Por outro lado, o caso Waldomiro parece sinalizar para futuras crises em que o poder da mídia pode esmagar qualquer chance de alteração de rumos. Mesmo que o governo deixe de ser tão medroso como vem sendo. Ao mesmo tempo, o governo Lula conta com uma base social mais organizada que a de Chávez. Há elementos chaves que podem fazer diferença na luta de classes, cá deste lado da fronteira. Chávez é ousado. Mas, ele só não caiu por muito pouco. Foi o povo nas ruas que fez a diferença. Não qualquer povo. Porque os brancos e ricos também foram às ruas para derrubar Chávez. Foi o povo indígena e pobre que derrotou o golpe. De baixo pra cima. No caso do governo Lula, sua
fraqueza também não quer dizer que os trabalhadores serão
derrotados. A Globo não tem chaminés, como uma companhia
de petróleo. Mas pode soltar muita fumaça se começar
a fritar o governo Lula. A reação governamental tende a ser
decepcionante e até desastrosa. Mas, o povo pode reagir aqui, como
reagiu lá na Venezuela. Corajosos ou medrosos, governos como o de
Chávez ou de Lula não podem responder pelas tarefas que cabem
aos trabalhadores e pobres em geral. Que é criar suas próprias
respostas. De baixo pra cima. Contra petroleiras e noveleiras.
Sérgio Domingues – Março de 2004 |