O cristo supersticioso e amigo
dos ricos de Mel Gibson
Por Sérgio Domingues, março de 2004 Com efeitos especiais de O Senhor dos Anéis e a apelação sangrenta de O Massacre da Serra Elétrica, a Paixão de Cristo faz o jogo dos poderosos. Acha que o pecado está nas vítimas da desigualdade, não nos criadores dela. Não é religioso. Muito menos, socialista. Mark Kermode, crítico do jornal inglês The Observer, acha que o novo filme de Mel Gibson pode ser comparado aos clássicos do terror sangrento. O Massacre da Serra Elétrica, por exemplo. Não é exagero. As cenas de tortura, o sangue abundante, a pele arrancada à base de golpes de chicotes farpados, o capricho na encenação dos pregos atravessando as mãos de Jesus, a cruz sendo jogada de um lado para outro para "ajeitar" o corpo pregado à madeira. Tudo isso mereceria aparecer em mais um filme de terror para adolescentes. Infelizmente, não é só isso. A pretensão é ir além de um filme como Sexta-Feira 13. Mas o filme não fica acima disso e ainda quer passar uma visão conservadora da religião. Gibson é daqueles
católicos que tem nojo da Teologia da Libertação
Mel Gibson disse em várias entrevistas que a sua versão é a mais fiel ao Novo Testamento. Não é bem assim. Meu conhecimento sobre o assunto é pequeno, mas não me consta haver descrições detalhadas das torturas sofridas por Jesus em nenhum dos quatro evangelhos. O filme dá-se ao trabalho de mostrar chicotadas que arrancam nacos de carne até alcançar os ossos das costelas do flagelado. O comandante do massacre chega ao ponto de suspender a surra apenas para que os carrascos virem o corpo de Jesus e sua parte frontal também receba a devida cota de açoites. Os evangelhos dizem que Jesus passou a ser torturado após Pilatos lavar as mãos. Mas no filme, o Cristo já aparece diante dele completamente desfigurado pelas chicotadas e pancadas. Pilatos surpreende-se com o estado de Jesus. Age como um comandante que se assusta com o exagero cometido por seus comandados. É com toda essa surpresa que entrega o destino do réu a raivosos judeus, cujo líder é o cruel Caifás. Este é outro problema sério do filme. É como dizer que um assassino
como Sharon representa o povo israelense
A presença abusada do demônio também é preocupante. Aliás, a figura maligna é representada por um tipo indefinido entre o feminino e o masculino. Uma possível referência à origem diabólica do homossexualismo? Vindo de quem vem, pode ser. O diabo aparece na "paixão" de Gibson mais do que autorizaria a leitura dos evangelhos. É o caso da cena em que o demônio tenta Jesus enquanto este rezava no Jardim das Oliveiras e pedia a Deus: "Pai, afasta de mim esse o cálice". Outro exemplo é a figura andrógina do Senhor das Trevas circulando entre a pequena multidão que assistia à tortura do Cristo. Em certo momento, ela aparece com um assustador bebê envelhecido no colo. Há uma cena em que Jesus é arrastado pelos soldados romanos logo depois de ser preso no Jardim das Oliveiras. Cai numa vala e fica de cara com uma figura demoníaca, antes de ser novamente conduzido pelos soldados. Nenhuma dessas cenas aparece explicitamente nos evangelhos. Mas todas elas lembram a aparência explícita que o mal assume em filmes como O Senhor dos Anéis. O diretor age como se tivesse
feito um documentário
Traços supersticiosos são muito comuns em alguns cultos evangélicos e de católicos tradicionalistas. Os primeiros atingem as camadas mais pobres da população. Usam a figura do demônio como responsável pelo desemprego, doenças, desentendimentos familiares, uso de drogas, alcoolismo. Tentam esconder com isso a realidade social que é a verdadeira causa da maioria desses problemas. Os tradicionalistas católicos, ao contrário, costumam reunir pessoas das altas classes. Ricos e famosos procuram justificar seu sucesso pela resistência às tentações do diabo e pelos serviços prestados ao "único e verdadeiro Deus" que cultuam. Os demais padecem na miséria por negarem o fanatismo deles, não por serem vitimas da desigualdade econômica. Gibson é um deles. Os filmes que estrelou têm, na maioria, os elementos de culpa, masoquismo e sangue de que procurou encharcar sua Paixão. Desde Mad Max, Máquina Mortífera, Coração Valente até Éramos Heróis, os personagens do ator e diretor australiano passam por verdadeiros calvários. Ajudam a justificar as injustiças do capitalismo. Mostram ao homem comum que miséria e sofrimento são etapas necessárias para alcançar a felicidade. Tanto a demonização de povos, como a encarnação do mal estão longe do que melhor produzem os esforços teológicos atuais. Aqueles que reúnem confessos de fés distintas no acordo de que a solidariedade tem que ser o objetivo das religiões verdadeiramente humanas. Muitos católicos, evangélicos, judeus, umbandistas, budistas, xintoístas e tantos outros sabem o quanto são falhas muitas das trajetórias de suas lideranças. Mas encontram pontos de contato na intervenção comum e generosa na vida social e política. Os socialistas e a confusão
do "ópio do povo"
O Movimento dos Sem Terra é um dos movimentos mais respeitados em sua luta no país. Acabou de completar vinte anos. Tem na Teologia da Libertação um de seus componentes ideológicos mais fortes. O mesmo vale para o movimento sindical e popular que deu origem à CUT, ao PT e a outras organizações de esquerda. O demônio, o pecado, o
desafio a Deus têm para esses companheiros, não a face do
irmão e da irmã. Mas a cara da sociedade construída
sobre valores que diminuem a beleza da raça humana. Comungamos da
mesma idéia. Que Mel Gibson vá curtir suas culpas no inferno!
Junto com Bush, Blair, Sharon, Saddam e o diabo…
Sérgio Domingues – Março de 2004 |