Golpe e Campos de Resistência
Por Nestor Cozetti, 3 de abril de 2004

Na lembrança dos 40 anos do golpe militar de 1964 têm surgido interpretações questionáveis: “A quem interessa esta falsificação histórica?” Pergunta Vito Giannotti, surpreso com o que vem lendo nos jornais. Ele é um dos convidados entre a nata da direção dos partidos e organizações da luta armada, do meio acadêmico, escritores, artistas, militares, jornalistas e intelectuais de algum modo envolvidos com este período considerado tenebroso da história brasileira.

Todos foram ao “64 + 40: Golpe e Campos de Resistência”, como foi denominado o evento. Dos convidados, 6 pertencem ao Conselho Político do jornal Brasil de Fato. O extenso acontecimento – 5 dias (29 de março a 2 de abril) – ocorreu na maior e primeira universidade federal do Brasil, a do Rio de Janeiro – UFRJ.

Quando um historiador e professor – não o único com a mesma visão entre os expositores - afirmou que toda a sociedade fora responsável pelo golpe de 1964, não teve como, aos já nascidos naquele ano, não se sentirem culpados pelo período histórico conhecido como Anos de Chumbo. E não como vítimas das balas e da tortura, mas como os que apertaram os gatilhos e os torniquetes. 

1. ‘Ditadura e Luta pela Democracia’, tema do primeiro dia (29/03)

Carlos Nelson Coutinho, militante do Partido Comunista Brasileiro –PCB, até a década de 80 e do PT até alguns meses atrás, professor da UFRJ e respeitado pensador marxista, o primeiro a falar, iniciou com algumas interrogações:

“Não temos uma plena caracterização da ditadura. Quero tentar verificar a sua natureza. Seus causadores tanto podem ser os latifundiários quanto os norte-americanos. A ditadura mostrou seu caráter modernizador das forças produtivas, seria modernizadora? Ou assumiu a bandeira da esquerda: façamos a revolução antes que o povo a faça”.

Sobre a luta pelo processo de abertura e de anistia “foi não derrota, mas vitória, pois retornaram os líderes políticos exilados”. Quanto ao período de transição da ditadura para a democracia “pode-se discutir se ainda não acabou”. Mas foi “uma transição liderada pela classe conservadora, fraca, que não removeu os males passados e que se abriu para o neoliberalismo”.

Cecília Coimbra, psicóloga do Grupo Tortura Nunca Mais – GTNM/RJ, expôs em seguida: “Vou falar um pouco de nós, mulheres”, e citou um poema de Alice Ruiz: “pensávamos mudar o mundo quando aconteceu o extermínio”. Lembrou que com o eco da revolução cubana a participação das mulheres passava a ser valorizada.

Com o Ato Institucional nº 5 emitido pela ditadura em 1968 houve “a implantação do terrorismo de Estado”, prosseguiu Cecília lembrando sua passagem por um quartel do Exército (DOI-CODI) do Rio de Janeiro em 1970, quando um médico foi vê-la “para saber até que ponto poderia resistir à tortura, com abusos sexuais e choques elétricos. Puseram-me ao lado do companheiro para sermos torturados juntos. Parece que foi ontem, ou hoje. Segundo o GTNM 884 mulheres foram presas, 24 mortas e 24 desaparecidas”.

Em seguida o professor e historiador Francisco Carlos Teixeira diria que o golpe de 64 foi “culpa de toda a sociedade e não só dos militares”. E havia, ainda segundo ele, na época “uma esquerda autoritária”.

Franklin Martins, o jornalista, comentarista político da televisão e ex-guerilheiro contra a ditadura (Movimento Revolucionário 8 de Outubro – MR 8), por sua vez teceu uma análise na contramão de seu predecessor: “O golpe de 64 teve uma causa central, a enorme resistência das forças conservadoras em aceitar uma maior democratização do país. Não vamos deixar o povo apitar neste processo. Não foi a sociedade que pediu o golpe, foram os conservadores. Houve resistência da esquerda armada, que foi aniquilada, morta em combate, a maioria na tortura”.

No mesmo dia, sob o tema ‘Partidos políticos e resistência armada’, o jornalista Marco Antonio Coelho evocou sua entrada no Partido Comunista Brasileiro – PCB, “em 1943, convidado por Darci Ribeiro. O PCB era oposição a Jango”, afirma, contradizendo os defensores da tese de que os comunistas estavam prontos para tomar o poder e o golpe fora uma reação.

2. ‘A Imprensa e a Resistência’ (30/03)

Veterano do jornalismo alternativo de resistência o jornalista Raimundo Pereira citou como exemplo de luta dentro da burguesia, à época, que o jornal “Última Hora – o maior e melhor do país, editado em 8 capitais – foi perseguido”. Nesta linha lembrou o nome do industrial Fernando Gasparian, criador do “jornal Opinião, que tive a honra de dirigir com os melhores colaboradores. Houve resistência nas redações, como na revista Veja sob a direção de Mino Carta, um resistente honrado. Houve o Pasquim e outros pelos estados, como o Versus e o Movimento”.

Denunciou que “hoje a imprensa burguesa não é de informação da opinião pública, mas de confusão da opinião pública. Globo e Folha de São Paulo são escandalosos, querem confusão, não informação. E Lula precisa da imprensa popular”.

O jornalista Domingos Meireles lembrou a censura no jornal Estado de São Paulo onde trabalhou. Os textos retidos pela censura traziam em seu lugar “no Jornal da Tarde receitas de bolo, no Estadão poemas dos Lusíadas, no início o povo não entendia, só aos poucos foram compreendendo”. Rebateu o que considera uma “mentira: a mídia não é o quarto poder, mas uma extensão do poder financeiro”.

Outro veterano, Milton Coelho, esteve “preso várias vezes durante a ditadura e como jornalista eu era ligado ao PCB e decidi ficar no trabalho da imprensa em vez de ir à luta armada, como os colegas Mario Alves e Jacob Gorender. Me mantive como profissional na imprensa legal e resisti na imprensa ilegal”.

O escritor e historiador Joel Rufino tomou a palavra em seguida: “O que parece ter acontecido com a imprensa nos últimos 40 anos é que  ocupa o papel de um partido político, um ente social que expressa o ponto de vista de uma classe ou estratificação social. É impossível formular alguma coisa hoje que ecoe no país sem que passe pelo totalitarismo da mídia. É preciso que surjam jornais críticos comprometidos com a destruição deste sistema”.

À noite o tema foi ‘Literatura e resistência’, com a presença de escritores convidados contemporâneos da ditadura. O poeta Armando Freitas Filho articulou o passado com o presente: “Há 40 anos atrás as luzes começaram a ser apagadas. Eu tinha 20 anos e as coisas estavam péssimas. O começo da nossa juventude foi cortada por essa gente, que ainda está aí hoje, como Sarney, que para mim é uma sarna, um cancro no poder e por isso é que as coisas não andam como devem andar”.

“Nossas idéias eram delirantes e equivocadas”, afirmou Alfredo Sirkys, ex-guerrilheiro autor de “Os Carbonários”, livro de memórias do período.

Alex Polari, autor de “Inventário de Cicatrizes”, militante que participou do seqüestro do embaixador alemão e foi preso aos 20 anos, hoje com 53, vive na Amazônia praticando e ensinando a cultura do Santo Daime. Lembrou que na época “a carreira de militância durava dois anos: ou se morria ou se exilava”. Na prisão passou a escrever “como estratégia de pura sobrevivência”. Também falou em “perspectivas equivocadas, mas generosas”.

3. ‘Mulheres na Resistência’ (31/03)

Sobre este tema um dos depoimentos foi o de Zilda Xavier, que se apresentou como “filha de ferroviários”. Coordenadora da Aliança de Libertação Nacional – ALN, dissidência do PCB fundada por Carlos Marighela, teve seus dois filhos mortos pela ditadura. Em 1970 foi presa e torturada no DOI-Codi do Rio de Janeiro. Fingindo-se de louca foi internada no hospital Pinel, quando fugiu e reintegrou-se na clandestinidade. Finalizou com as palavras: “Valeu a pena fazer a luta armada e a luta pela democracia”.

Elizabeth Xavier, autora de um livro com depoimentos de 13 ex-prisioneiras políticas registrou as seguintes palavras do general Fiúza naqueles dias: “As mulheres são muito mais ferozes que os homens. E elas eram torturadas por homens, e não como estes torturados por pessoas do mesmo gênero”.

Victória Grabois, sobrevivente da guerrilha do Araguaia onde foram mortos, além de seu marido, o pai e o irmão, denuncia: “Lula não nos recebe para falar dos arquivos do Araguaia porque está em conluio com os militares, não há canal de comunicação com o governo Lula”.

O tema ‘Resistência na cidade e no campo’, que veio a seguir, fez lembrar que as comemorações do “1º de maio - Dia do Trabalho - eram proibidas até 1978”, como disse Hércules Correia, ex-líder sindical.

“O que se falou até aqui dá para fazer o livro A Ditadura Reabilitada”, ironizou Vito Giannotti, escritor e diretor do Núcleo Piratininga de Comunicação. “Um golpe de direita civil e militar, nacional e internacional, não foi um contra golpe – mentira deslavada para justificar a ditadura militar - pois sequer houve resistência no dia do golpe, só depois. Goulart queria apenas reformas dirigidas pela burguesia da época, o inverso de outra mentira: a do golpe preventivo”.

Prossegue indagando Giannotti: “A quem interessa esta falsificação histórica? Aos que mudaram de lado e dizem que somos todos iguais, que a luta de classes acabou, justificação da traição. Interessa para mudar o foco de direção, o apoio que a classe dominante e a mídia deu ao golpe, não dizem que eles é que foram golpistas. Com marinheiros ou sem marinheiros haveria o golpe. Em 1964 a força hegemônica do PCB não era a favor de nenhum tipo de tomada do poder pela força”. E ressalva: “Houve resistência contra a ditadura, enaltecer a resistência à ditadura é necessário porque senão ela continuaria até hoje”.

João Pedro Stédile, um dos líderes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MRST, ao levantar-se para tomar o microfone olhou para a câmara de TV e disse: “Deixa eu me ajeitar aqui para a Globo: vocês deveriam ter acendido as luzes também para eles”, dirigindo-se aos que falaram antes.

“Sou membro de um movimento – prossegue – que se considera herdeiro deles, sobretudo das Ligas Camponesas. É necessário lembrá-los, ainda mais que nós se, comparados a eles, somos uma tropa de bundões. Hoje muita gente só entra nos movimentos sociais para se darem bem na vida, e nossa luta é para que todos sem exceção se dêem bem”.

Stédile, em sua análise do que foi o golpe e a resistência, afirmou que “de 54 a 64 houve no ascenso do movimento de massas, um amadurecimento político ideológico. Surgiram pela primeira vez movimentos camponeses com caráter de classe, as Ligas, as Uniões de Trabalhadores Rurais organizados pelo PCB. O mesmo na área progressista da  Igreja Católica, com o Movimento de Educação de Base – MEB, de Dom Hélder. A luta dos camponeses era para democratizar o Estado burguês. No final de 1962 legalizaram os sindicatos rurais”.

“Jango apresenta então sua proposta de reforma agrária. Vislumbrava a desapropriação de terras apenas acima de mil hectares. Daí veio o golpe - e alguns babacas dizem que foi um contra golpe – que vinha sendo programado há muitos anos. O estado militar liberou as forças de direita. Nestor Veras, líder camponês do PCB foi morto. Feroz ditadura acabou com toda organização camponesa. O movimento dos trabalhadores rurais só pôde ressurgir em 1979, como resistência de sobrevivência dos posseiros. A partir deste ano as massas camponesas voltam a se organizar. Então em 84 nasce o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MRST, como uma forma condensada de todo o processo anterior, que não existiria sem eles”.

“O que aprendemos e o que esperamos: Só a luta de massas é que pode fazer mudança social. Os movimentos precisam ter autonomia, o MRST é autônomo dos partidos políticos, da Igreja e do Estado. O movimento social só terá futuro e longevidade se formar os seus próprios quadros”.

“O que mais assusta a classe dominante é quando os pobres se organizam com ideologia. E ideologia é quando a classe tem um projeto político de mudar a sociedade de classes. Por último e porque o golpe: a burguesia se industrializou e houve uma diminuição dos movimentos de massa. O PCB não tinha uma tese de revolução. Os EUA não quiseram a saída da reforma burguesa: a alternativa era o golpe militar. A manus militari era necessária para deter a rearticulação da massa”.

Stédile concluiu com uma avaliação do momento histórico atual: “É ainda de crise, de busca de um novo modelo popular. Por isto a crise do Lula de buscar um novo modelo. Nosso papel? Verdadeiro mutirão para discutir qual é o modelo econômico e político para o nosso país, para sabermos como sair da miséria em que nos encontramos. Conclamo vocês: vamos preparar um 1º de Maio contra o capital e contra a Globo, só vamos ter mudanças com o povo na rua”.

4. ‘Ditadura e Resistência’ (01/04)

Sobre este tema Jacob Gorender, militante histórico e ex-membro do comitê central do PCB e fundador do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário - PCBR, autor do livro Combate nas Trevas, frisou que “a classe média em sua maioria apoiou o golpe”. Já “o apoio da direita vinha desde Jânio Quadros através da UDN”. Contando com o apoio crucial de um ex-diretor da Agência Central de Inteligência – CIA, norte-americana: “Castelo era amigo de Vernon Walthers desde a FEB”, a Força Expedicionária Brasileira na II Guerra Mundial.

“O golpe já vinha desde 1954 com o suicídio de Getúlio Vargas”, acredita o professor e conceituado filósofo marxista Leandro Konder, ex-militante do PCB e do PT. “É um passado que não se rompeu totalmente – acrescenta - mas que ainda está nos incomodando. E quem desconhece o passado se condena a repeti-lo”.

Em seguida a professora Virgínia Fontes cita “toda uma bibliografia que comprova documentalmente que o golpe, através de organizações empresariais que se articulavam com grandes recursos financeiros, vinha sendo tramado desde 1961: era um golpe de classe. É argumentação golpista a que fala em contra golpe”.

Para falar sobre o tema Movimento Estudantil sentaram-se à mesa dois ex-presidentes da UNE. Um deles, Jean-Marc Von der Weid, confessou: “Nós achamos que podíamos enfrentar o regime com a luta armada, após a repressão completa ao movimento estudantil”.

5. ‘O Balanço da Luta Armada’ (02/04)

À exceção do mediador todos os expositores do tema são ex-integrantes da luta armada. Criméia Alice Schmidt de Almeida é sobrevivente da guerrilha do Araguaia, onde perdeu, mortos em 1973, o marido e o sogro. Ela afirma que a opção pela luta armada de seu partido, o PC do B, não foi uma opção, mas uma imposição “do acirramento da luta de classes”.

O historiador Daniel Arão Reis, ex-líder estudantil e militante da dissidência – DI da Guanabara - do PCB, que veio depois a formar o MR 8, professor da UFRJ e autor de livros dobre o período, defende que: “Essas arbitrariedades não podem ser impunes, hoje isto precisa ser ensinado aos jovens”. Contudo, Arão é dos que defendem “que toda a sociedade participou como autora do golpe”.

Para Cid Benjamim, que foi da direção do MR 8 e agora é jornalista e professor universitário, “os jornais hoje falam coisas pouco sinceras. Por exemplo, como se comportavam na época: a Folha de São Paulo emprestava carros para o DOI-Codi. Esquecem de fazer mea culpa. Todos eles, à exceção da Última Hora, apoiaram o golpe militar”. Esclarece que “esse golpe veio no bojo da Guerra Fria e foi preparado pelo imperialismo dos Estados Unidos, num conjunto de golpes militares na América Latina. Contra golpe é uma bobagem. Estão querendo desqualificar a luta armada: não fomos loucos, mas a atitude generosa do que havia de mais generoso na juventude”.

“A resistência não serviu de nada?” Indaga Benjamim: “E Zumbi dos Palmares, também não serviu para nada? É preciso resgatar esses valores”, acrescenta. “Falo com o orgulho que tenho de ter participado desta geração que se incorporou ao patrimônio de luta do povo brasileiro”. Finalizou com a ressalva de que hoje “não se tem democracia sem democratização da mídia, sobretudo a eletrônica”.

No último tema debatido no último dia do evento, ‘Teatro e Resistência’, o dramaturgo e diretor teatral Augusto Boal, depois de reclamar da invisibilidade que sofre pela mídia os seus vários e atuantes grupos de ‘Teatro do Oprimido’ no Rio de Janeiro, “eles não existem”, concluiu: “Seria um crime esquecer os crimes da ditadura brasileira”.