A mídia custa a dar
voz ao debate científico sobre o aquecimento global
Por Antonio Luiz Monteiro
Coelho da Costa para Carta
Capital, março de 2004
Guerras e desastres causados
por mudanças climáticas podem custar milhões de vidas
em poucos anos.
A repercussão internacional
da matéria publicada pela revista britânica The Observer,
no domingo 22 de fevereiro, embute uma omissão, como notou o escritor
e jornalista australiano Tom Engelhardt em seu blog TomDispatch. Mas a
forma como isso passou despercebido da maioria dos leitores e comentadores,
revela um problema quase tão grave quanto o do próprio aquecimento
global.
A matéria não
forneceu informações falsas, nem sequer exageradas. Mas dava
a entender ser um furo mundial sobre um assunto, até então,
mantido em segredo. Não foi bem assim: em 9 de fevereiro, na revista
norte-americana Fortune, as mesmas informações, com mais
detalhes técnicos, haviam sido publicadas sob o título de
Climate Collapse, The Pentagon's Weather Nigthmare (Colapso Climático,
o Pesadelo do Pentágono) e reproduzidas por mídias independentes.
Você pode lê-la, por exemplo, no site ambientalista http://sierratimes.com/04/02/09/ar_weather.htm
ou em http://www.independent-media.tv
A falta de atenção
para essa primeira matéria - a ponto de poder ter sido relançada
duas semanas depois como furo de ressonância mundial - é,
por si mesma, uma história muito reveladora sobre os pontos cegos,
cada vez mais vastos da imprensa, principalmente, mas não só
a norte-americana.
Bush distorce a ciência
os relatórios sobre o Iraque, acusam 12 prêmios Nobel
A maior precisão científica
do artigo de David Stipp na Fortune tornava-o até mais assustador
que o da Observer para quem o soubesse ler. Que o mundo está a caminho
de virar um inferno em razão das mudanças climáticas,
há muito tempo deixou de ser novidade, mas se "há poucos
anos tais mudanças pareciam ser sinais de possíveis problemas
para nossos filhos e netos, hoje anunciam um cataclismo que pode não
esperar, convenientemente, que já tenhamos passado à história".
O estudo do Pentágono
trabalhou com a possibilidade bem real de estarmos muito perto de um limiar
crítico a partir do qual o clima pode virar repentinamente, em menos
de uma década - "como uma canoa que se inclina pouco a pouco até
emborcar de repente", escreveu Stipp.
A hipótese de trabalho
- que deve ser entendida como um cenário plausível, não
como uma projeção - é que essa virada aconteceria
entre 2010 e 2020. Seria resultado do derretimento, já visível,
das geleiras do Ártico. A água doce assim libertada, juntamente
com a chuva intensificada pelo aquecimento global, vai se misturar à
Corrente do Golfo e reduzir sua salinidade e densidade. A corrente, hoje
submarina, seria retida na superfície e perderia seu ímpeto.
Isso travaria a "correia transportadora"
que conduz calor do Caribe para a Europa Ocidental e a torna muito mais
habitável do que paragens igualmente setentrionais no Canadá,
nos EUA e na Rússia (a latitude da Holanda e das Ilhas Britânicas
é comparável à do Labrador canadense e da Kamchatka
siberiana). Icebergs chegariam à costa de Portugal e a Europa congelaria.
Em 2020, a temperatura média já teria caído 3 graus
na maior parte do Hemisfério Norte.
Os peixes abandonariam as atuais
zonas pesqueiras em busca de águas mais aprazíveis. Na terra
ou no mar, espécies incapazes de migrar se extinguiriam (9% a 58%
de todas as espécies animais hoje existentes, segundo diferentes
hipóteses).
Ao mesmo tempo, a temperatura
do resto do mundo subiria e os padrões de chuvas e secas seriam
alterados em várias partes do planeta, provocando estiagens e inundações,
difundindo para outras partes doenças, hoje restritas aos trópicos,
e agravando os conflitos internacionais, principal razão do interesse
do Pentágono no tema.
Suas especulações
incluem a invasão da Rússia pelo Japão e países
da Europa Oriental em busca de energia e recursos naturais, a reunificação
das Coréias em uma nova potência capaz de somar a capacidade
nuclear do Norte com a tecnológica do Sul e o rompimento pelos EUA
do tratado que garante o fluxo do rio Colorado para o México, o
que condenaria o país vizinho à desertificação,
enquanto seus imigrantes famintos – juntamente com os do Caribe e da América
do Sul - seriam impedidos de entrar na reforçada "fortaleza América
(do Norte)".
Stipp sugere que 25% da população
masculina dos países pobres pode morrer nesses conflitos. Contou
também que a 20th Century Fox lançará em meados do
ano um filme de catástrofe mais ou menos baseado nesse roteiro,
chamado The Day After Tomorrow, no qual Dennis Quaid interpreta um cientista
que salva o mundo (ou o Hemisfério Norte?) dessa idade do gelo,
paradoxalmente, causada pelo aquecimento global.
Mas na Fortune o teor explosivo
do assunto parece ter passado despercebido - como se Londres e Haia ficassem
em outro planeta. Era "só" um "pior cenário" plausível
que o Pentágono gentilmente "concordara em partilhar" com essa revista
de economia e negócios e com os estrategistas das transnacionais
norte-americanas.
Neste caso, parece que o meio
matou a mensagem. O resto da mídia global não tomou conhecimento
até a Observer relançar o assunto e politizá-lo como
se deve. O silêncio não foi rompido nem na quarta-feira,18,
quando 60 cientistas (incluindo 12 premiados com o Nobel, 11 com a National
Medal of Science, três com o prestigiado Prêmio Crafoord, dois
ex-assessores presidenciais de ciência e vários reitores de
universidades e presidentes de institutos de pesquisa) endossaram um relatório
da organização liberal União dos Cientistas Engajados
(Union of Concerned Scientists - UCS) que acusa Bush de enganar o público
ao distorcer a ciência de acordo com sua vontade política,
assim como fez com os relatórios da CIA sobre "armas de destruição
em massa" do Iraque.
Trata-se de uma denúncia
ampla, que se refere também ao ocultamento pela Casa Branca de evidências
levantadas pela Agência de Proteção Ambiental (EPA)
sobre poluição por mercúrio perto de termoelétricas
e produção de bactérias resistentes a antibióticos
pela criação de porcos, a troca de peritos científicos
por representantes de empresas e igrejas em órgãos consultivos
do governo federal, o apagamento e revisão de trechos de relatórios
científicos oficiais, a proibição de divulgar que
a ênfase na abstinência sexual por parte dos programas de "educação
sexual" de Bush fez subir as estatísticas de gravidez adolescente
e a ordem da Casa Branca ao Instituto Nacional do Câncer para este
declarar, erradamente, que o aborto provoca câncer de mama.
Mas a questão mais vital,
sem dúvida, era a supressão dos estudos sobre mudança
climática e registros de temperatura do relatório anual da
EPA divulgado em junho de 2003, também ordenada pela Casa Branca,
que os substituiu por um estudo financiado pelo American Petroleum Institute.
Mesmo jornais que aplaudiram
a UCS, como The New York Times, não citaram o estudo do Pentágono.
Do outro lado da cerca, os mais imperialistas que o imperador - como o
filósofo Olavo de Carvalho, no site Mídia Sem Máscara
- tentaram desqualificar o posicionamento da organização
sobre o aquecimento global com base em que "as referências a ela,
acompanhadas dos respectivos links, são abundantes nos sites de
organizações militantes comunistas, socialistas e pró-islâmicas",
sem se dar conta de que fontes tão insuspeitas quanto a Fortune
e o Pentágono haviam divulgado cenários muito mais alarmantes.
Esfregou as mãos? Haia
e seu Tribunal Penal Internacional afundam, diz o Pentágono Ainda
mais assustador é que mesmo depois de publicada a denúncia
no Reino Unido e amplamente comentada na mídia européia,
asiática, árabe, israelense, canadense e brasileira, os principais
órgãos da mídia norte-americana continuaram alheios
ao assunto. O New York Times dedicou várias matérias ao carnaval
brasileiro, mas não se referiu ao relatório do Pentágono.
Nem o Washington Post.
Já o jornal conservador
Washington Times - que na véspera havia ridicularizado o ex-candidato
democrata Al Gore por tentar ressuscitar a discussão sobre o Protocolo
de Kyoto e fazer dele um tema de campanha - ao menos acusou o golpe ao
publicar um texto do filósofo Sterling Burnett, do instituto conservador
National Center for Policy Analysis.
Burnett citou as divergências
ainda numerosas entre climatologistas sobre os mecanismos exatos desencadeados
pelo aquecimento global para classificar como "ficção científica"
a tese da mudança climática, sem se perguntar por que o Pentágono
se dá ao trabalho de analisar estratégias reais para enfrentar
a tal "ficção".
É como os artigos patrocinados
pela indústria do fumo que, até o início dos anos
90, alegavam que a falta de consenso dos oncologistas em relação
aos mecanismos que levam ao câncer desqualificava como científica
a tese de que o cigarro o causava, ainda que tivesse sido exaustivamente
demonstrada por estatísticas.
Mais tarde o discurso dessa
indústria embarcou na onda do individualismo neoliberal: passou
a defender a responsabilidade e a liberdade pessoal de "optar" pelo risco
de contrair um câncer. Mas no caso do aquecimento global, não
há como optar individualmente, mesmo em tese, por correr ou
não o risco de causar uma catástrofe planetária. Aliás,
de acordo com o cenário do Pentágono, os países mais
pobres e menos responsáveis pelas emissões de gás
carbônico serão os primeiros e mais duramente atingidos pela
vingança cega da natureza.
Houve quem, ao constatar a
indiferença da sociedade civil ante o aquecimento global e seus
efeitos mundialmente catastróficos a longo prazo, lembrasse de certa
experiência científica cruel, mas verdadeira.
Uma rã colocada em água
quente salta imediatamente para fora, mas colocada em uma panela de água
fria sobre um fogo que eleve sua temperatura pouco a pouco, a mesma rã
nada tranqüilamente até morrer cozida.
Da mesma forma, a julgar pelas
manchetes da imprensa norte-americana, sempre há mais gente disposta
a tomar ou exigir providências em relação aos riscos
de ser vitimado por um criminoso desconhecido, por um terrorista islâmico,
pela queda de um avião, por abelhas africanas e até pelo
choque de um asteróide com a Terra do que a fazer o mesmo contra
as conseqüências muito mais vastas e certas, mas graduais, de
seu próprio consumo irracional e supérfluo de petróleo.
Agora nos é dito, porém,
que essas conseqüências talvez nem sejam tão graduais.
Talvez se tornem drásticas, óbvias e praticamente irreversíveis
já nesta década, ou na próxima. Mesmo assim, a mesma
imprensa que dá capas e manchetes a debates sobre os riscos das
gorduras hidrogenadas e dos implantes de silicone continua a tratar essa
questão como um debate acadêmico complicado, abstrato e distante.
Talvez seja mais apropriado
atribuir essa relutância a uma propensão a exagerar problemas
que, aparentemente podem ser atribuídos a um "outro" a ser punido
ou uma natureza a ser domesticada, para melhor ocultar aqueles causados
pelo modo de viver, produzir e consumir da mesma sociedade que a própria
mídia não se cansa de exaltar e promover.
Como noticiar - ou simplesmente
pensar de dentro do american way of life - que as emanações
dos jipes esportivos que encantam as famílias norte-americanas podem
ser muito mais úteis aos Quatro Cavaleiros do Apocalipse que todos
os terroristas da Al-Qaeda e do Hamas, somados? Que a desregulamentação
e o livre mercado, em vez de levar ao melhor dos mundos possíveis,
podem nos conduzir ao pior desastre da história? Fez fortuna, em
outros tempos, o lema "melhor morto do que vermelho (better dead than red)".
Agora, parece que mais vale morrer sonhando o american dream do que abrir
mão do exagerado padrão de consumo dos EUA: melhor morto
do que menos rico.
Parece mais fácil ser
racional na pobre República das Maldivas, tão pequena que
seus cidadãos brincam que só é preciso encher os tanques
de seus carros uma vez por ano. É formada por pequenos atóis
de coral do Oceano Índico (aquele que abriga a capital tem 500 hectares),
com pouco mais de um metro de altura. As mudanças climáticas
já começaram a destruí-los e mesmo uma pequena elevação
do nível do mar os inundaria rapidamente. Seu governo tem construído
diques e quebra-mares para retardar a destruição dos atóis
e, em 1997, começou a construir uma ilha artificial chamada Hulhumale,
um pouco mais alta que seu território natural, para abrigar seu
povo. É a primeira Arca de Noé do século XXI.
Seres humanos não são
rãs. Distinguem-se de outros animais, entre outras coisas, pela
sua capacidade superior de interpretar indícios, relacionar causas
e efeitos e antecipar os resultados de suas ações. Mas também
por sua capacidade de mentir até para si mesmos - principalmente
quando se trata de políticos e empresários (inclusive de
mídia) para os quais o encobrimento da verdade favorece seus interesses
mais óbvios e imediatos.
Isso não diz respeito
apenas ao atual governo dos EUA, apesar de seu engajamento a favor dos
interesses do setor petrolífero ter obviamente agravado a questão:
já no tempo de Clinton os democratas hesitavam em defender abertamente
o Protocolo de Kyoto e sua relutância aumentou ainda mais depois
dos efusivos cumprimentos da National Association of Manufacturers (a CNI
dos EUA) e da Câmara do Comércio a Bush por ter defendido
o interesse nacional contra o tratado que limitaria o consumo de combustíveis
dos países industrializados.
Restou nos EUA, porém,
uma instância encarregada de pensar o impensável - as Forças
Armadas. Como parece improvável que a Casa Branca decida privatizá-las,
seus cientistas podem acabar como os únicos autorizados a discutir
ecologia sem serem tachados de antiamericanos.
Mas não nos iludamos:
ao tratar do assunto, o Pentágono lembra um certo figurante freqüentemente
citado por Luis Fernando Veríssimo. Sua participação
na peça seria entrar em cena durante uma bacanal, jogar as mãos
para o alto, escandalizado, e dizer: "Mas isto é Bizâncio!"
O ator entrou em cena na hora certa e disse a fala corretamente. Só
que fez isso esfregando as mãos.
Da mesma forma, é difícil
não imaginar os generais a esfregar as mãos ao listar os
novos riscos para a segurança nacional e prever a transformação
dos EUA em vasta fortaleza protegida por um arsenal ampliado e modernizado
que proteja seus recursos de serem consumidos por imigrantes famintos empilhados
em precárias jangadas ou pilhados por nações desesperadas,
armadas com bombas atômicas.
A conclusão do
relatório do Pentágono, vale notar, é positiva: "Os
EUA sobreviverão sem perdas catastróficas", ao contrário
da maioria das demais nações do mundo. Se lhes importa mais
estar em primeiro lugar do que viver em um mundo razoavelmente habitável,
serão os demais que terão de jogar as mãos para o
alto, se escandalizar e gritar "Mas isto é Bizâncio!"
Sem esfregar as mãos.
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