Pô, Chico, você pisou na bola! E feio.
Em charge na capa do jornal “O Globo”, o presidente da Bolívia, Evo Morales, é mostrado ligando para Marcola, insinuando algum acerto entre eles [Clique aqui para ver a charge]. Não dá para entender a piada. Por Gilberto Maringoni, na Carta Maior, 17/5/2006


Chico Caruso é um dos melhores chargistas de todos os tempos em todo o mundo. É um talento incomparável. A história do Brasil dos últimos 30 anos fica melhor contada se for acompanhada das charges desse paulistano de Vila Madalena. Sua entrada na imprensa gerou uma legião de imitadores, criando um “padrão Chico”, uma espécie de ISO-9000 de excelência gráfica.

Seus dois primeiros livros, compilações de seu trabalho cotidiano no Jornal do Brasil, são memoráveis. “Natureza morta e outros desenhos” (1979) e “Não tenho palavras” (1980) exibem as personagens do final da ditadura – Figueiredo, Leitão de Abreu, Golbery etc. – em flagrantes hilários que câmera alguma conseguiu jamais captar. Virtuoso do traço e simultaneamente popular, Chico arrebentava. 

Em 1984, nosso herói surpreende novamente. Editou um álbum de pôsteres – “Pablo mon amour” – no qual combina pinturas de Picasso com sua pena afiada. Uma caricatura de Adolf Hitler posando nu para o gênio catalão, enquanto este pintava Guernica, é um ponto everestiano da caricatura universal.

Como se diz no interior, tive a honra de organizar um livro no qual estávamos juntos, na companhia de seu irmão Paulo, além de Laerte, Claudius, Negreiros, Glauco, Jal e Alcy. A apresentação era de Luís Fernando Veríssimo e o volume chamava-se “Os filhos da Dinda” (1992), sobre as desventuras do escândalo PC-Collor.

Ah, ele é ainda excelente pessoa e papo agradabilíssimo, além de protagonizar shows musicais de se rir às bandeiras despregadas com seu irmão e uma banda de cobras.

Pronto, a bola de Chico está pra lá de cheia (embora ele não precise disso). 

MANCADA

Agora vou falar de uma pisada feia que ele deu.

É a charge publicada na capa de “O Globo” de quarta-feira, 17 de maio. Lá no pé da página está o desenho do presidente boliviano Evo Morales ao telefone. Título: “As ligações perigosas”. A fala de Evo: “Marcola? Morales! Maravilha...”

Cuma?

Que a Globo tenha se esmerado em construir e destruir reputações através de meias-verdades propagadas via cabo e satélite, qualquer criança sabe. Que tenha se expandido e se tornado monopólio através de facilidades obtidas durante a ditadura, através da obtenção de financiamentos de pai para filho, incentivos vários e agilização na importação de equipamentos, isso qualquer criança sabe. Que tenha tentado manipular as eleições de 1982 no Rio e que tenha feito uma edição porca do último debate da campanha presidencial de 1989, para prejudicar Lula, todos estão calvos de cientificar-se. Que mais recentemente tenha demitido sumariamente seu principal comentarista político, o competente e digno Franklin Martins, também é notícia velha. Mas que Chico Caruso tenha comprado o peixe-podre do noticiário da Rede sobre os novos governantes latino-americanos, eleitos na onda anti-neoliberal, isso é novidade. 

Atuando como partido político – definição imortal de Leonel Brizola – a empresa do Jardim Botânico tornou-se temida e venerada em todo o país. É a expressão acabada de nosso atraso em democratizar e tornar a comunicação um direito público. 

Chico nunca fez coro com isso, apesar de trabalhar na empresa há 26 anos. Sempre buscou, mesmo nas situações mais difíceis, marcar sua independência em relação ao negócio do dr. Roberto e sua família. 

ENTENDENDO O CHISTE

Peguemos a charge. Vamos dar uma de chato. Façamos como Millôr Fernandes, no memorável Pif-paf, jornalzinho alternativo de 1964. Toda semana, ele pegava um cartum e sapecava-lhe um título: “O Pif-paf explica uma piada”. O arrazoado era tão absurdo quanto engraçado. Aliás, muito mais engraçado que o desenho. Tentemos explicar, ou entender a charge. 
“Ligações perigosas”. O título é do livro de Chordelos de Laclos (1741-1803), sobre dois membros aristocráticos da França pré-Revolução, o Visconde de Valmont e a Marquesa de Merteuil e os mútuos desafios que se colocam em infindáveis conquistas amorosas. Mesclando poder, dinheiro e sedução, ambos estabelecem teias de relacionamentos e dominação, tendo como pano de fundo uma sociedade em vias de se transformar radicalmente. 

O que Chico propõe não é nada disso. É apenas um trocadilho. “Ligações” aqui tem o duplo sentido de ligação telefônica e vínculo. A fala é aparentemente sem sentido. Por que Evo Morales ligaria para o chefe do PCC? Que vínculo – ou ligação – têm os dois? Um nacionalizou o gás e empreende uma disputa com as multinacionais – Petrobrás incluída – em favor do povo de seu país. Há poucos dias, afrontou dois bancos europeus ao estatizar fundos de pensão. Ou seja, cumpre o que promete e vai contra o pensamento econômico dominante. Que mal causou ao Brasil? Nenhum.

Já Marcola é chefe de uma rede criminosa que levou o pânico a dezenas de cidades paulistas e sublevou vários presídios. Que ligação tem com Morales? O leitor não sabe. Quem sabe Chico disponha de uma informação de cocheira a que poucos têm acesso. Deve ser um furo jornalístico espetacular. Não há detalhes maiores no jornal. Coisas assim, quem costuma fazer é o ex-cineasta e ex-jornalista Arnaldo Jabor, porta-voz saltitante da direita hidrófoba. O oposto de Chico.

Talvez não seja nada disso. Chico tentou fazer o que chargistas volta e meia fazem: pegar fenômenos simultâneos, sem enlace aparente, e mostrar sua conexão lógica. Às vezes dá coisas engraçadíssimas. Às vezes dá chabus monumentais. Este é o caso.

Fazer charge todos os dias não é fácil. A possibilidade de se errar a mão é grande. 

O talento de Chico mal se acomoda nos seus 1,90 m de altura. A charge de Evo Morales foi um escorregão. Chico é muito melhor do que essa piada. Ou pisada. Vale o trocadilho.
 


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