À Ordem branca! O que os ataques do PCC nos têm a dizer?
Por Jaime Alves, maio de 2006


O maior ataque criminoso perpetrado pelo Primeiro Comando da Capital (PCC)  em São Paulo tem muito a nos dizer sobre a crise do sistema de segurança  pública no Brasil, sobre a crise de legitimidade da ação policial e expõe as fraturas de uma sociedade marcadamente desigual no acesso de brancos e negros à Justiça e aos bens sociais. Aqui, a segurança pública sempre foi vista sob a rubrica da militarização, da brutalidade contra os negros e do combate aos inimigos internos sob o eco da Ordem. As prisões são concebidas como depósitos de seres humanos inviáveis. Os maus-tratos e a tortura foram institucionalizados no imaginário autoritário da polícia e tornaram-se procedimento -padrão. Assim se arranca de jovens negros confissão de crimes, se forja flagrantes baseados na cor da pele, se criminaliza os pobres. 

Aproveitando-se do medo fabricado pelos meios de (des) informação, transforma-se a favela em local privilegiado do crime e seus moradores em bandidos, malvados,  sanguinários que se deve exterminar para garantir a segurança dos "bons".

Que legitimidade tem um Estado ineficiente na garantia de direitos  fundamentais, mas diligente na aplicação do direito penal contra os pobres? Ou um Sistema de Segurança Pública que incorporou o arbítrio na prática policial, uma máquina de matar que se volta insistentemente contra os negros? Nas lágrimas derramadas pelas mães dos jovens mortos covardemente pela polícia na periferia de São Paulo ou no grito dos 30 mortos da última chacina da Baixada Fluminense, ou ainda, no sangue dos jovens mortos no mais recente extermínio na periferia do Recife residem uma trágica dúvida: quem seria pior, o crime organizado ou o Estado criminoso?

É imperativo pensar que não se deve relativizar o valor da vida (seja dos policiais ou dos bandidos mortos). Mas com os ataques do PCC, deixando as autoridades de joelho, estranhamente reativa em nós uma necessidade de contextualizar a ação criminosa desta facção e tentar explicá-la como sintoma do que vem por aí em uma sociedade extremamente autoritária e imbatível em sua fabricação de desiguldades raciais e sociais.Os membros do PCC não nasceram bandidos. Eles surgiram no vácuo deixado por um Estado elitista que tem na administração da justiça sua principal arma contra os pobres e negros. Um sistema judicial racista que desempenha papel importante na criminalização dos empobrecidos e na legitimação da violação aos direitos humanos como se viu na absolvição do monstro do Carandiru, o coronel Ubiratan, nos 12 mortos na inexplicável operação Castelinho ou na vergonha humana em que se transformou a Febem.

Verdade que não dá pra ver nos últimos episódios uma luta direta entre os "do andar de baixo e os do andar de cima". Nem todos os integrantes do PCC são de origem pobre ou negros - equivaleria sustentar estereótipos segundo os quais os negros e pobres são criminosos. Mas vá-se nas prisões e veja-se a cor dos presos. Ou ainda, a cor dos mortos pela polícia nas chacinas como o tristemente famoso Massacre do Carandiru. 

Impossível compactuar com a ordem branca, com seu conceito de justiça e segurança pública porque equivale defender a manutenção do status quo ou explicar a realidade a partir da dicotomia simplória: os bons X os maus.

É nesse sentido que a rebelião dos últimos dias tem muito a nos dizer. Pelo grau de iniqüidades sociais - com predominante conteúdo racial uma vez que os negros são a base da pirâmide social brasileira -  já era para a ordem branca ter sido desmoronada ha tempo com sangue correndo em seus "jardins"! Essa ordem só se manteve até hoje devido `a eficiência do seu discurso cimentado no mito da democracia racial e do país das oportunidades.

Até aqui morreram os pobres, sob o olhar indiferente de uma elite cínica protegida pelo aparelho do Estado. Como ficará essa elite quando o seu sangue começar a correr nas ruas? Quando os seus filhos sentirem na pele a dor que ha 500 anos transpassa a alma da juventude negra? Quando a luta pela sobrevivência transformar em insuportável a convivência "cordial"; quando os que nada têm colocarem a guilhotina em posição de deslocar do poder os que sempre tiveram tudo, certamente se apelará para a pena de morte, a redução da maioridade penal ou  caracterizará a luta contra a opressão como ação terrorista.

 Até hoje a maquina da opressão tem triturado os negros excluindo-os da universidade pública, colocando-os em desvantagens no mercado de trabalho e por fim assassinando-os nos guetos a eles destinados pelos brancos. Mas o outro lado dessa tragédia nos diz que quem foi despossuído de tudo, não tem nada a perder. Como provam os inúmeros exemplos de resistência pacífica (como o auto-acorrentamento na frente das universidades e bancos ou as ocupações de shoppings) nossa gente se sabe excluída e sabe quem são os algozes de hoje. Talvez os últimos acontecimentos se prestem a uma rica reflexão `a Casa Grande. Como lembrou certa vez Luiz Gama, na defesa do escravo Jacinto, um escravo que mata seu senhor não comete ato ilegal! A luta contra a opressão é legítima e necessária. Ela tem sido pacífica, mas um dia a miséria cansa!
 


Jaime Alves é jornalista, negro, integrante do Educafro - Educacao e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes e Grupo Ecológico e Humanista Papamel. E-mail: amparoalves@gmail.com

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