Os
dois lados da moeda notícia
Por Vinicius Souza e Maria Eugênia Sá, maio de 2006
Quer alguns exemplos da falta de diversidade? Como cidadão instruído e parte da elite, certamente você acompanha o que acontece no mundo, em nosso país e tem boas noções de geografia e história recente da humanidade. Sabe bem que os regimes nazistas e fascistas mataram mais de seis milhões de judeus durante o chamado Holocausto. Mas dificilmente teve conhecimento de velhos, mulheres e crianças de origem germânica sofrendo por anos as mesmas torturas, prisões arbitrárias e extermínio depois da Segunda Guerra em países como a antiga Tchecoslováquia. Você também ouve falar constantemente de epidemias, fome, miséria e guerras na África. Mas sabia que mesmo depois de 14 anos de luta armada pela independência e 27 de conflito civil, praticamente não existem menores abandonados em Angola? Por maiores que sejam as famílias e as dificuldades de sustentá-las, uma criança na rua é sempre recolhida por uma mãe na esperança de que outra ajude seus filhos se eles se perderem. Quer mais? Os atentados suicidas praticados pelos grupos de resistência à ocupação no Iraque e na Palestina ocupam há anos, quase que diariamente, as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo. Entretanto, até os exércitos dos EUA e Inglaterra derrubarem Sadam Hussein, era outro o território que estava no topo do ranking. A Caxemira ocupada desde 1947 pelos exércitos da Índia, China e Paquistão tem mantido nos últimos 15 anos, e até hoje, uma média de dois a três atentados por semana e cinco pessoas mortas POR DIA, em conflitos e repressão aos movimentos separatistas e por auto-determinação. Os prisioneiros políticos somam mais de cinco mil indivíduos (como em Guantánamo), a tortura é um hábito comum e o estupro em massa de mulheres mulçumanas em frente de seus maridos e filhos é utilizado cotidianamente como tática militar para quebrar a vontade do povo. Existe um soldado estrangeiro para cada 10 habitantes da Caxemira, que não falam sua língua, comem sua comida ou comungam de sua religião. Não é nem preciso cruzar meio mundo para descobrir informações relevantes que não chegam aos nossos ouvidos. Ninguém duvida da seriedade da guerra civil e do tráfico de drogas na vizinha Colômbia. Seria importante notar, contudo, que mais de 80% dos assassinatos naquele país não têm qualquer relação com FARCs, paramilitares e cartéis internacionais de produção e comércio de cocaína. De fato, a maior parte dos homicídios ou têm motivos fúteis (brigas de bar, de trânsito, entre vizinhos e acidentes com crianças que descobrem a arma dos pais), ou são resultado de latrocínio e conflito entre policiais e bandidos. Uma realidade muito mais próxima da situação brasileira do que se poderia imaginar pelas manchetes reproduzidas aqui das agências internacionais. Estas, aliás, normalmente vêm dos EUA, que injeta milhões de dólares por ano para manter suas bases militares no país supostamente para "lutar contra a narco-guerrilha terrorista". Mas deve ser só uma coincidência… O Brasil mesmo está cheio de exemplos da "dor da gente que não sai no jornal". Enquanto a bíblica lepra, hoje chamada hanseníase, está erradicada em todo o mundo dito civilizado, somos incrivelmente o segundo país em número total de doentes e em novos registros anuais (só perdemos para a Índia, com uma população quase 10 vezes maior). Este é um caso puro de preconceito e estigma fomentado pela total falta de informação. Se você leitor, seus vizinhos, sua comunidade e mesmo os médicos conhecessem apenas os fatos básicos desta doença milenar, perceberiam que não existe justificativa alguma para termos 50 MIL NOVOS CASOS POR ANO. Afinal, a despeito das histórias que sua avó contava sobre leprosos tocando sinos na estrada para afastar a população sadia, a verdade é que mais de 80% das pessoas são geneticamente resistentes ao bacilo causador da doença e nunca vão adquirir a hanseníase, não importa o quanto convivam intimamente com um portador. E mais, apenas metade dos doentes que adquirem também transmitem a doença e mesmo esses deixam de ser transmissores com a primeira dose da medicação gratuita. Só que quando um dermatologista vai à TV, o assunto em geral é algum tratamento "revolucionário" (super caro, claro) contra as rugas. A pergunta então é: por que não lemos, ouvimos ou vemos essas notícias nos grandes veículos de comunicação? Por que praticamente não existem documentários, exposições, palestras, filmes sobre esses temas? Não são todos relevantes e atuais? Não atingem diretamente, diariamente, com força e brutalidade, milhares, milhões de pessoas? Gente real que sofre, vive, tem esperança e tenta sobreviver na Europa, África, Ásia e América Latina. A resposta é tão simples quanto dramática: falta interesse político e comercial. A verdade não vende jornal! Pelo menos não mais do que qualquer declaração "bombástica" de um deputado cassado e notoriamente mentiroso. E os grandes impérios de comunicação, cada vez mais em mãos de menos pessoas, não irão nunca contra os interesses de seus financiadores/investidores/anunciantes. Mesmo quando se consegue superar o bloqueio a assuntos sobre os quais os concorrentes não estão falando, os cortes de custos e pessoal nas redações, junto com os acordos editorias com as poucas agências de notícias, criaram uma imensa distorção nos preços pagos por trabalhos jornalísticos. É mais barato reproduzir os textos e fotos do pacote de uma agência do que produzir material novo e diferente. E a notícia é tratada como uma mercadoria qualquer, como sabão ou laquê. Neste mercado orientado exclusivamente ao lucro, uma matéria de página inteira da edição de domingo do maior jornal do Brasil, para a qual os repórteres e fotógrafos arriscaram suas vidas viajando por conta própria e penetrando sem qualquer proteção em áreas de conflito armado em um país estrangeiro; vale exatamente o mesmo que duas páginas em uma pequena revista segmentada com fotos de três executivos pouco conhecidos falando sobre os produtos eletro-eletrônicos que lançarão este ano. Se nem os grandes veículos tradicionais têm interesse em bancar decentemente bons trabalhos de investigação jornalística sobre importantes temas humanitários, que dirá as empresas, com foco ainda maior nos ganhos de capital. Por mais feliz, esperançosa e bonita que esteja a criança numa fila de distribuição de alimentos no meio da savana Angolana, ela não é páreo para o poder de sedução ao consumo de uma Supermodel na passarela de um evento Fashion. Sob esse raciocínio, realmente faz mais sentido para um multinacional européia com negócios na África e Brasil pagar algumas dezenas de milhões de dólares na contratação de uma negra esguia estadunidense, e se recusar a investir poucos milhares de reais para lançar um livro de fotografias documentais de Angola, mesmo com certeza de uma grande exposição na Bahia, a maior colônia de angolanos no Brasil, que já havia feito sucesso em São Paulo e Brasília. Ou não? Resta
a nós, profissionais sérios que buscamos a notícia
diferenciada, a matéria exclusiva, o ponto de vista brasileiro sobre
o que acontece de verdade em nosso mundo (e não qualquer bobagem
dita por uma "celebridade" efêmera construída pela televisão),
um dilema cruel: nos rendemos ao "Deus Mercado" e passamos a escrever e
fotografar o que a mídia diz que o consumidor quer ler e ver; ou
continuamos lutando arduamente para trazer uma informação
de qualidade a um público que acreditamos estar sedento por boa
arte e realidade não manipulada. Como neste mundo capitalista de
mente estreita não podemos contar nem com a impresa nem com os empresários,
resta tentar a sociedade organizada, os movimentos populares, os sindicatos
e eventualmente os governos simpáticos aos temas humanitários.
Será uma luta vã?
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