Um homem é um homem
Grupo mineiro monta Brecht e denuncia Bush e aliados. De quinta a domingo, às 19.30h, no teatro Carlos Gomes, até 4 de junho. Por Stela Guedes Caputo, maio de 2006


O país imaginário é Urbequistão, em cuja capital Dagbá estão aquartelados cem mil soldados ocidentais, em uma guerra preventiva. Essas são as principais circunstâncias que vão transformar o pacato carregador Galy Gay em uma máquina de matar. O Grupo Galpão está no Rio até o dia 4 de junho para a temporada do espetáculo “Um homem é um homem”, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com direção de Paulo José, também responsável pela livre adaptação da obra. A 16ª montagem do grupo mineiro vem bem a calhar, não só porque denuncia Bush, Blair e aliados em sua ensandecida invasão e guerra ao Iraque, mas também porque marca o cinqüentenário da morte de Brecht (14/8/1956). Na entrevista que segue, concedida pouco antes de mais uma apresentação, atores do grupo falam da experiência de fazer um espetáculo brechtiano.

Mesmo vocês tendo montado “A alma boa de Setsuan”, de Brecht, em 1982, ainda não era o Galpão enquanto grupo. Então podemos falar que é a primeira vez que o Galpão monta Brecht?

Eduardo Moreira – É a primeira vez. São 24 anos entre uma montagem e outra. Sei que naquele momento foi uma verdadeira formação. Eu era muito jovem. Não sei se tinha uma apreensão do que era a proposta do teatro do Brecht, como acho que hoje, ao montar esse espetáculo, tenho. Nesse sentido é uma apreensão muito mais madura. O Toninho também participou daquela montagem talvez ele possa falar.

Antônio Edson – Espero que hoje a gente tenha mais clareza do que tinha naquela época. Essa montagem é mais madura, mais completa. Naquela época éramos todos iniciantes. Não tínhamos muita bagagem. Não tínhamos como garantir se estávamos apreendendo as orientações dadas pelos diretores. Embora tanto naquela época, com o Teatro Livre de Munique, como agora com o Paulo José, a direção estivesse em mãos de pessoas que conhecem bem o Brecht.

Inês Peixoto – É como quando a gente lê um livro. Aos 18 lemos de uma forma, aos 30, lemos o mesmo livro de outra. Mesmo eu não estando na montagem de “A alma Boa”, fiz Brecht na escola, em 81 e, sem dúvida, existem muitas diferenças, a experiência nos transforma. Montamos “Romeu e Julieta” em 92 e, em 2002, dez anos depois, eu me via abordando minha personagem de outro modo. O tempo modifica nossa maneira de ver uma obra.
 

Em que medida podemos dizer que o Galpão, ainda que não montasse Brecht, era brechtiano? 

Eduardo Moreira – O Brecht estava muito preocupado em dizer alguma coisa para as pessoas. Embora todo o teatro viva disso, o teatro do Brecht narra mais diretamente ao público porque não utiliza a “quarta parede” (ver mais no Box sobre Brecht). Acho que esse era um elemento brechtiano mais presente no grupo, ainda que apenas coincidentemente.

O teatro de Brecht altera todas as relações envolvidas na representação teatral. O ator não é apenas um artista mímico que incorpora um papel, mas é consciente e interroga esse papel. O diretor não transmite orientações, expõe teses sobre as quais os atores devem tomar uma posição. Como foi para o grupo trabalhar dentro dessa perspectiva?
 
Eduardo Moreira – O Paulo José trabalhava com a gente sempre tentando evitar um tom dramático e sempre buscando uma interpretação mais simples. Havia também uma alternância de ver o personagem na primeira pessoa ou na terceira pessoa. De ver o personagem como algo fora do ator. O Paulo sublinhava muito isso. O Brecht mistura estilos, critica o próprio teatro em sua maneira de fazer e tentamos achar o tom entre a interpretação e a narração ao público, nossa pesquisa foi basicamente essa.

Paulo André – No texto do Brecht, o espectador já sabe de antemão o que vai acontecer, não há surpresa, não há envolvimento melodramático, então buscamos também entender um pouco mais isso.

Eduardo Moreira – O público já sabe que o estivador Galy Gay vai se transformar no soldado Jeraiah Jip. Isso é avisado, não se precipita nenhum acontecimento. Não é o que vai ser contado que importa, mas o como vai ser contado. Isso foi importante para o grupo trabalhar.
 

O autor alemão buscava uma arte engajada, mas não abria mão de fazê-la com prazer e com humor. Vocês que sempre trabalharam com o humor, o que há de diferente no humor brechtiano?

Eduardo Moreira – Acho que Brecht era mais irônico.

Paulo André – O humor está na situação, não vejo diferença no humor do Brecht e outros.

Arildo de Barros – Também não vejo diferença. Humor é um conceito genérico, cada autor tem o seu tipo de humor, mas é sempre humor, as coisas que provocam o riso, seja pela ironia, seja pela inversão de situações. Mas acho que a gente precisa se divertir no palco para que as pessoas se divirtam. O humor de Brecht é irônico.

Para Brecht importava desenvolver uma nova arte, um novo palco, mas, sobretudo, novos espectadores. Para ele, não cabia ao teatro mudar o mundo, função que atribuía ao público. O que o grupo pensa sobre os espectadores de seu teatro?

Júlio Maciel – A gente trabalha com todo tipo de público, até porque também fazemos teatro de rua.Da mesma forma, criança, velho, adulto e procuramos atingir a todos.

Antônio Edson – Não fazemos um teatro direcionado a um determinado perfil de platéia. A abrangência do público que atingimos dificulta uma avaliação sobre ele. É como fazer uma síntese da sociedade, porque de A a Z assiste ao Galpão.

Inês Peixoto – A gente queria levar esse trabalho para a rua e estreamos em uma lona de circo, o que é bem legal, já que o picadeiro é um espaço intermediário entre o palco comum e a rua. Agora fizemos na rua mesmo em duas cidades do Nordeste e a recepção foi maravilhosa. Um tema super importante, difícil e que o público entende.
 

Ainda sobre o público. Quem acompanha o Galpão está acostumado com um outro cenário e até mesmo um outro modo de interpretar do grupo. O público não estranhou esta montagem?

Paulo André – Acho que é importante o público perceber que o Galpão não tem uma cara fechada. É importante para um grupo de teatro ter outras caras senão vira um grupo folclórico e não de teatro. A gente vai amadurecendo e quer que o público amadureça também.

Antônio Edson – Eu percebo e acho que outros também percebem, que existe uma grande parcela do público que gostaria de ver um Galpão só. O Galpão do Romeu e Julieta, ou da Rua da Amargura. Talvez se sintam, lá no íntimo, traídos.

Inês Peixoto – O legal é que pessoas que viram “Um homem é um homem”, apesar de uma temática difícil e que não tem final feliz, acham o grupo bem parecido com os primórdios do grupo. Tem a perna-de-pau, a música, uma dinâmica física puxada, então ainda somos nós também.
 

A peça faz uma alusão de que as grandes potências mundiais, para invadir o Iraque, recrutam um exército de Galy Gays. Mas Galy Gays também não são todos os que assistem passivamente a matança?

Eduardo Moreira – Somos todos Galy Gays.

Antônio Edson - O grande cutucão que esperamos é que o público saia incomodado e com a seguinte questão: “será que não tô sendo Galy Gay?”

Inês Peixoto - A peça também coloca que é cômodo ser um Galy Gay que é manipulado e se deixa manipular porque há momentos em que ele pode ir embora e não vai. Há Galy Gays que não sabem mesmo dizer não e há os que para quem é muito conveniente não dizer não!

(Pergunta dirigida à atriz Simone Ordones – Ao fazer a viúva Leokadia Begbick, você realiza um dos elementos fundamentais no teatro de Brecht, ou seja, interpreta e narra a encenação, se dirige a platéia alertando-a, muitas vezes. Como foi pra você atuar dessa forma?

Simone - Foi uma experiência muito nova porque nunca havia feito personagem narrador. O Paulo José fala que a viúva, na peça, é o Brecht, fizemos até a referência com o charuto do Brecht porque a Leokadia fuma charuto. Foi um desafio porque ela é a personagem narradora, uma característica do teatro épico do Brecht. São personagens dentro e fora. No começo foi muito difícil estar “cara a cara” com o público, sem a quarta parede e sem estar no personagem. Na estréia dei uma “engasgada”, mas com as apresentações já estou mais tranqüila. Era uma responsabilidade grande porque ela conduz, mas também não conduz porque sem ela a peça também vai. É uma experiência muito fresca, mas também muito estimulante.
 
O grupo pensa em montar Brecht outra vez?

Antônio Edson – Não de imediato, mas o futuro a Deus pertence.

Inês Peixoto – O grupo namorou várias vezes o Brecht que sempre esteve presente em nossas leituras para a escolha de novos trabalhos. Namoramos “O círculo de giz caucasiano” e outras peças. Com certeza Brecht é um autor que ainda diz muito ao nosso tempo.

Alguém quer falar mais sobre o espetáculo?

Eduardo Moreira – Acho que o espetáculo realiza uma coisa boa que era um preceito do Brecht. Ele faz um teatro que faz refletir, mas que diverte, o que era fundamental para Brecht, pelo menos ele diz isso em seus escritos teóricos. Ele era uma pessoa bem humorada, com prazer pelo mundano, pelas mulheres, pela vida o que transparece em suas peças. Eu lembro que conversamos com o grupo “El Galpón” de Montevidéu, que montou “Um homem é um homem”, e um de seus atores disse que viu a montagem na Alemanha, no Berliner Ensemble. Para ele, a encenação alemã era muito mais divertida do que as montagens na América no Sul que eram mais proselitistas. Ele ficou espantado com a leveza das montagens alemãs. O mérito da nossa montagem é fazer uma fusão da reflexão com a diversão.

Eu me preocupo um pouco com essas análises que tentam “resgatar Brecht” afirmando que salvaguardam sua poesia e estética e eliminam dele o político. Não é isso que vocês estão dizendo é?

Eduardo Moreira - Não porque é impossível tirar o político do Brecht, está no cerne de seu trabalho, mas é tirar o proselitismo. Brecht coloca os conflitos, as questões, as dúvidas em cena. Não ensinamos nada a ninguém.
 
 


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