Brutalidade da impunidade no caso de Eldorado não foi pauta no dia 17
Por Verena Glass, jornalista da Agência Carta Maior, abril de 2006


Dez anos depois de uma das mais brutais chacinas da história recente do país, quando 19 cidadãos, de profissão agricultor, foram assassinados pela polícia – dez deles, segundo o laudo da perícia, com tiros a queima roupa -, alguns meses depois da soltura dos únicos dois condenados entre os 155 executores do massacre de Eldorado dos Carajás (o coronel Mário Collares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira, sentenciados a 228 e 154 anos de prisão, respectivamente), alguma coisa no Estado de Direito parece fora do eixo.

O dia 17 de abril, que marca o massacre de Eldorado, em 1996, é uma data na qual o MST se outorgou o direito de expressar a sua dor; pelas 19 perdas, pelos mais de 60 feridos, pelos cerca de 20 mutilados que sofrem com balas alojadas pelo corpo e não receberam ainda as acordadas indenizações do Estado, pelos demais 552 assassinatos ocorridos no ! Pará de 1985 a 2005, com apenas 12 julgamentos dos culpados (segundo dados divulgados nesta terça (18), pela Comissão Pastoral da Terra), e pela sina dos que vivem “feito saco plástico tombando no vento”, como definiu certa vez uma velha raizeira de Goiás, de acampamento em acampamento, de despejo em despejo.

No entanto, o que se viu, ouviu e leu nesta segunda sobre o “17 de abril” pouca relação teve com as causas destas dores, ou mesmo com a impunidade e a inversão do conceito de justiça que marcam o caso. Como pode dar uma idéia o rápido garimpo nas páginas eletrônicas de caráter jornalístico deste dia.

No Estadão On-line, por exemplo, as chamadas durante o dia foram: “MST invade duas fazendas em Minas Gerais”, “MST invade 10 fazendas no Pontal do Paranapanema”, “MST saqueia caminhões e bloqueia estradas em PE”, “Atos marcam os 10 anos do massacre de Carajás”, “MST ocupa fazenda de celulose no interior da Bahia”, e “Sem-terra saquearam caminhão de carne em Campo Grande”. No site Terra: “MST lembra dez anos de Carajás com saques e bloqueios”, “Agricultores saqueiam caminhões de massas e biscoitos durante bloqueio na BR 408”, “Assista: MST fecha estradas e saqueia caminhão em PE”, “Veja: sem-terra lembram massacre com atos por todo o País”, “MST faz ações no RS para lembrar Massacre de Carajás”, e “Condenado por massacre em Carajás se diz inocente”.

Durante boa parte da tarde, a Folha Online destacou a manchete: “MST saqueia caminhões, bloqueia estradas e promove ocupações pelo país”. Outras chamadas deram conta que “MST promove homenagens aos 19 mortos”, “MST inva! de fazenda da Suzano na Bahia”, e “Sobreviventes de Carajás carregam seqüelas”. Na Agência Estado, os destaques foram “MST ocupa terras em MG em protesto contra Carajás”, “MST deve ser tratado na lei, diz Tarso”, “MST invade 10 fazendas no Pontal do Paranapanema”, “Sem–terra também protestam em Maceió”, “MST bloqueia rodovias no interior de PE” e “Integrantes do MST saqueiam 15 mil quilos de alimentos em Pernambuco”.

Já nos noticiários da TV, o grande filé da noite foi a denuncia de um agricultor, que se dizia ex-membro do movimento no Rio Grande do Sul, de que nos acampamentos do MST há consumo de drogas, se armazenam armamentos pesados e ocorrem abusos sexuais.

Agora, uma pequena elipse. No final da tarde de segunda, sob uma garoa fina e a luz difusa da iluminação pública da Praça da Sé, cerca de 500 manifestantes de diversos movimentos sociais promoveram em São Paulo um ato pela memória dos mortos de Eldorado dos Carajás. Mas estavam na pauta também outros ! casos de violação dos direitos humanos, como o massacre dos 111 presos do Carandiru, a violência na Febem, o extermínio de sete moradores de rua em outubro de 2004, e as 15 mortes por exaustão, de bóias-frias no corte de cana no interior do estado.

Em comum, estes casos compartilham a falta de punição dos culpados. Mas contam também com um obstinado grupo de questionadores, sejam movimentos organizados dos próprios atingidos, sejam especialistas em direitos humanos, que buscam basicamente o cumprimento das leis.

O que dizer em relação ao comportamento da Justiça e do Estado nos casos como o massacre de Eldorado dos Carajás, o que dizer sobre a opinião pública, e o que dizer sobre os movimentos sociais? A parcialidade da Justiça no julgamento de questões referentes às diversas classes sociais parece estar se transformando num axioma nacional. O Estado, fraco demais ou indisposto politicamente a solucionar as mazelas sociais precisa de vilões, dos bandidos e dos bárbaros para culpar perante a sociedade. E a opinião pública, formada (ou será que refletida?) pela imprensa, é a que atira pedras.

Com a justeza das lutas e a imagem desconstruídas sistematicamente pela imprensa, como se viu neste dia 17,! os movimentos sociais, que tem amargado cotidianamente as “pizzas” ensangüentadas da impunidade de Eldorados, Carandirus, Felisburgos, Corumbiaras e Candelárias, enfrentam agora um recrudescimento do conservadorismo da opinião pública.

Nada justificaria, em tese, que a defesa de direitos humanos e a luta pela dignidade não fosse aplaudida de pé. Por que isso não acontece? Que sistema é esse que apresenta as vítimas como vilões, despertando medo e, conseqüentemente, ódio nos “cidadãos de bem”? Que sociedade está sendo construída quando os que pedem justiça são 500 e os que os julgam são milhões? “É a reascensão do fascismo!”, sentenciou um molhado Luiz Eduardo Greenhalgh, deputado petista, na escadaria da catedral da Sé no início da noite do dia 17.

Em nota divulgada no final da tarde desta terça, referindo-se às declarações sobre sexo, drogas e armas de seu ex-integrante, o MST gaúcho denunciou que o movimento “vem sendo alvo de uma operação organizada pelo g! rupo de comunicação RBS em conjunto com as policias gaúchas, que tem o objetivo de criminalizar o Movimento e construir uma imagem negativa da organização na sociedade”. E conclui: “O grupo RBS e o governo gaúcho estão tentando criminalizar o MST porque são defensores do latifúndio e do agronegócio, e o nosso movimento luta por reforma agrária, por soberania alimentar e agricultura camponesa. Seguiremos organizando famílias e lutando para conquistar terra para quem nela quer trabalhar!”.

Palavreado simples, mas que carrega um simbolismo poderoso. Um alento para quem entende, se querem saber.
 


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