Haja cruz
Por José Arbex Jr., abril de 2006


20 de janeiro, 2006: pelo menos 120 agentes da Polícia Federal, incluindo um destacamento do Comando de Operações Táticas, de Brasília, todos armados, disparam bombas de efeito moral e balas de borracha contra os habitantes das aldeias Córrego D’Ouro e Olho D’Água dos povos tupiniquim e guarani, e finalmente tocam fogo em suas casas. O ataque, fulminante, aterroriza e destrói as duas aldeias; oito de seus líderes são presos, dezenas de seres humanos saem feridos. A ação, realizada no município de Aracruz (ES), cumpre liminar concedida à empresa Aracruz Celulose pelo juiz federal Rogério Moreira Alves, da Vara Federal de Linhares, no dia 7 de dezembro. Detalhe: na operação, os policiais usam um helicóptero e maquinário da empresa, conta o jornalista Cristiano Navarro, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no jornal Brasil de Fato.

A ação foi um ato ilegal, observa Navarro: nem a Comissão de Caciques, nem a Fundação Nacional do Índio (Funai), nem o Ministério Público foram avisados da reintegração, como deveriam. Dois funcionários da Funai local tentaram impedir o despejo, mas não foram ouvidos pela polícia. Pressionada por organismos internacionais de defesa dos direitos humanos que denunciaram a violência policial e a flagrante ilegalidade da ação de despejo, a família real da Suécia livrou-se de ações daquela empresa.

8 de março, 2006. Cerca de 2 mil mulheres da Via Campesina – Brasil, ligadas ao MST, ocupam uma área da empresa Aracruz Celulose, em Barra do Ribeiro (RS). Ali acontece a 2ª Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural da FAO (agência das Nações Unidas para a Agricultura). As mulheres destroem o laboratório da transnacional e milhões de mudas de eucalipto, incluindo aquelas desenvolvidas em pesquisas.

A mesma mídia que, em janeiro, noticiou de forma bastante rápida, superficial e corriqueira a ação ilegal da Polícia Federal subsidiada pela Aracruz Celulose, agora monta um estardalhaço imenso contra o MST. Às já tradicionais e cansadas acusações de “subversão” e “violência”, somam-se agora as de “barbarismo”, “inimigos da ciência”, “anacrônicos” e “obsoletos” – semelhantes aos argumentos utilizados pelos defensores dos transgênicos. As mulheres do MST são descritas como uma espécie de re-edição do movimento ludita. Curiosamente, tal discurso pretensamente favorável ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia chega a seduzir uma parte importante da classe média, incluindo muitos que, normalmente, são simpáticos ao movimento.

Mas os nossos amigos “defensores da ciência” não informam – por distração, ignorância, má-fé ou, o que é mais provável, uma mistura disso tudo – alguns fatos bem interessantes sobre a produção do eucalipto e a indústria da celulose. Vamos a eles.

1. Cada pé de eucalipto, árvore da qual se extrai a celulosa é capaz de consumir 30 litros de água por dia. As raízes do eucalipto penetram nos lençóis freáticos, prejudicando o
abastecimento de água de regiões inteiras. Onde são plantados, os eucaliptos tornam a terra estéril, imprópria para qualquer outro cultivo, o que causa também um desastre ambiental de grandes proporções. Não por acaso, as plantações de eucalipto são chamadas de “deserto verde”.

2. Os efeitos desastrosos do “deserto verde” são sentidos na pele pelas populações dos Estados do Espírito Santo, Bahia e Minas Gerais, e amplamente denunciados por ambientalistas e cientistas agrônomos. Apesar disso, há agora um interesse econômico em disseminar a plantação de eucaliptos no Rio Grande do Sul (onde a Aracruz já tem 50 mil hectares plantados), por ser aquela região alimentada pelo aqüífero Guarani, o maior lençol freático do planeta. Qual será o impacto sobre o aqüífero? Ninguém sabe ao certo. Mas o tradicional pampa gaúcho será ameaçado de extinção.

3. As fábricas de celulose (só a Aracruz produz 2,4 milhões de toneladas por ano) poluem a atmosfera e a água.

4. A Aracruz é formada por um conjunto de empresas: a noruguesa Lorenz detém 28% cujo maior acionista é o cunhado do rei da Noruega); 28% são do Banco Safra (de capital internacional, com sede em Mônaco), 28% são da Votorantim e 12,5% do BNDES. A Souza Cruz (grupo British American Tobacco), também tem acionistas, mas em menor percentual. Pergunta: por que as transnacionais não exploram o eucalipto em seus próprios países?  Com a palavra, a ativista norueguesa Ingeborg Tangeraas, da União de fazendeiros e pequenos agricultores: “A Aracruz está roubando ou ocupando território de indígenas e isso criou uma reação forte no nosso povo. Tem muita floresta na Noruega, como também na Suécia e Finlândia, que formam a Escandinávia, no norte da Europa, onde foi fundida a empresa Stora Enso, que também produz celulose no Brasil. Porque não produzem a
celulose lá na Europa? Para poder usar a madeira das árvores nativas da Escandinávia é preciso deixar crescer entre 10 e 30 anos. Em vez disso, o eucalipto já pode ser usado depois de 7 anos. E é muito mais barato produzir no Brasil, a mão-de-obra sendo mais barata.” Mais claro, impossível.

“Como se fosse pouco, ainda recebem gordos incentivos do governo, desde a época da ditadura militar (quando foram favorecidos para ocupação de terras indígenas  quilombolas)”, diz Cristiano Kern Hickel, do Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais. “Em dezembro de 2005, foi aprovado empréstimo de R$297.209.000,00 pelo BNDES à Aracruz que, entre outros, servirá para modernização da sua fábrica de celulose no Rio Grande do Sul. O prazo de carência desses créditos do BNDES é de 21 meses, só a partir daí começam os pagamentos do empréstimo: os prazos das amortizações chegam a 84 meses. Tudo isso a juros de até incríveis 2% ao ano! O BNDES também emprestou US$ 318 milhões para a construção da fábrica da Veracel (empresa da Aracruz Celulose e Stora Enso, sueco-finlandesa - são concorrentes mas ao mesmo tempo sócias, alguém entende?), na Bahia. Além do governo federal, o governo do Rio Grande do Sul já financiou mais de R$ 29 milhões, desde 2004, no agronegócio ‘florestal’. Com tantos aliados assim, fica fácil atingir o lucro líquido de R$ 1,2 bilhão (como em 2005).”

(Enquanto isso, o presidente Lula proclama o seu suposto apoio à agricultura familiar. Mas os juros praticadas pelo Programa Nacional da Agricultura Familiar (Pronaf) variam até 8,75% ao ano, escandalosos quando comparados à mamata concedida à Aracruz.)

É preciso, portanto, desmontar o “discurso pró-ciência e tecnologia”, e perguntar a quem a sua aplicação beneficia. As mulheres do MST não são luditas. Não são contrárias nem à ciência nem à tecnologia. Mas lutam em defesa de um país limpo, sadio, justo e soberano. A mídia vassala do império não suporta nada disso.

A propósito, aliás, da extrema parcialidade da mídia, aproveito a deixa do leitor Cid, de Fortaleza. Após criticar o tom “alarmista” (o adjetivo é meu) adotado por este colunista em alguns artigos, Cid observa que certas notícias, mesmo importantes, não são publicadas se afetam determinados interesses. Dá o exemplo concreto de um escândalo devidamente abafado pela mídia nacional: em janeiro de 2006, um figurão do PSDB de Tocantins foi preso no interior do Pará, quando transportava 500 kg de cocaína. “Adivinha o que eles fariam se fosse com alguém do PT”, pergunta. Segue a nota enviada por ele:

“Os brasileiros que quiserem saber quem estava por trás dos 500 kg de cocaína apreendidos semana passada no interior do Pará terão que recorrer à imprensa argentina, mais precisamente ao jornal La Nación, pois no Brasil nenhum grande jornal destacou a notícia de que era o tucano Misilvam Chavier dos Santos, conhecido como Parcerinho, quem transportou a droga.

Misilvan foi candidato a prefeito de Tupiratins (TO) pelo PSDB em 2004 e perdeu a eleição por pouco menos de 50 votos. Na ocasião, recebeu forte apoio do senador Eduardo Siqueira Campos, que também é do PSDB de Tocantins. Parcerinho foi preso em um ônibus em Castanhal, município do nordeste paraense (100 km de Belém), na noite de sexta-feira, quando vinha de São Paulo. Misilvan tentava voltar para o Tocantins depois que um carregamento com 500 kg de cocaína foi apreendido pela PF, nas margens do Rio Xingú, fronteira com o Estado do Mato Grosso (MT).

A agência de notícias Reuters reportou o caso e distribuiu a informação para toda a imprensa brasileira, mas poucos jornais e TVs repercutiram a informação; os que o fizeram omitiram a filiação partidária do traficante.”

Pena que os “amigos da ciência” não notam esse tipo de descalabro.
 

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José Arbex Jr é jornalista e professor da PUC-SP

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