A legítima ofensiva dos camponeses
Por Alipio Freire, de Campinas, abril de 2006


Madrugada. Sentado frente ao computador, fuço a internet.
De repente – e não mais que isto – sinto sair-me pelo ouvido algo estranho.
Na mesma fração de segundo em que levei a mão à orelha tentando me proteger e entender o que acontecia, aquilo que se despregara de mim já dera uma cambalhota no ar e se encarrapitara no canto superior direito do monitor:
Era um grilo, trajando casaca e cartola, que me ameaçava com um guarda-chuva enrolado, enquanto gritava repetidamente e a todo pulmão:

“Você aí parado,
também foi cooptado?”.

“Você aí parado,
também foi...

Como se percebesse que eu retomava o controle dos sentidos depois da surpresa, e me preparasse para lhe perguntar o que significava tudo aquilo, escorregou rápido até o teclado do computador e, saltando sobre as teclas, com seus pequenos pés guarnecidos de polainas brancas, acionou comandos. Entrou direto no site da Torre do Tombo, em Lisboa, e clicou o link “Século 16”.

Puxou um primeiro documento que me fez ler.
Acompanhei com alguma dificuldade a caligrafia do escrivão da época. Mas, nada de novo. Apenas matéria conhecida desde que fiz o primário: o decreto através do qual El Rei de Portugal dividia as terras descobertas por Cabral em capitanias hereditárias e nomeava seus proprietários.

Mal acabei de ler o centenário texto digitalizado, e antes que pudesse fazer qualquer outra pergunta, já entrava na tela um segundo documento. Contemporâneo do primeiro, dava conta da proibição, por parte da Coroa Portuguesa, da impressão ou publicação de qualquer texto em suas colônias. Documento severo, seguido de uma lista de punições contra quem o desobedecesse (inclusive pena de morte), garantia o monopólio de impressão e publicação para a Metrópole.

Rapidamente o grilo desligou o micro e, com uma cambalhota idêntica à que deu origem à sua entrada em cena, desapareceu.

Permaneci um tempo imóvel, tomado de certa letargia, enquanto na cabeça  ecoava a palavra de ordem gritada pela minúscula criatura, agora embrulhada naqueles papéis que me fizera ler e cujo sentido almejado pelo grilo não captava.

“Você aí parado,
também foi cooptado?”.

“Você aí parado...

Um barulho na porta me fez sair do torpor. Era o Marcos, porteiro da noite, que cumpria sua rotina, deixando nas portas dos apartamentos os jornais do dia e alguma correspondência, antes de passar o turno.

Abri a porta e peguei jornais, revistas e um envelope contendo um impresso e dirigido a mim.

Folheei os jornais do dia. Nada de novo.

Nos últimos dias, a tônica recai sobre “os saques”, “as invasões e depredações” e outros “excessos” contra “a ciência e o progresso” promovidos pelos sem terra.
Até ontem, grandes manchetes encimavam grandes fotos, denunciando os “crimes do MST” e exigindo o restabelecimento da ordem. Hoje, os camponeses sumiram do alto da primeira página, ocupado pelo depoimento do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.

Sobre o MST, apenas uma chamada menor, em duas colunas, lá em baixo, com o título: “MST quer atrair 17 milhões de adesões”. Num discreto olho abaixo do título: “Líder do movimento é ferido à bala, de raspão, em marcha no Recife”. Ao lado, numa foto – também em duas colunas –, manifestantes agarram um policial. As imagens da foto não são nítidas, estão confusas, embaçadas, embaraçadas. Há, no entanto, um estranho foco sobre uma estampa de Guevara impressa na camiseta de um manifestante, e sobre uma bandeira do MST. São os únicos objetos de leitura clara, discernível, colocados lado a lado. Na legenda: “Policial é agredido por manifestantes do MST em Recife”. No meio do texto, descobre-se que um dirigente do MST (Jaime Amorim) e um agente pastoral foram feridos a bala. A notícia encerra narrando: “Em Curitiba, ao lado de João Pedro Stédile, o presidente Venezuelano Hugo Chávez pediu votos para a reeleição de Lula”.

Outra vez e ainda de repente, o computador se acende em minha frente e a minúscula figura de casaca e cartola, com suas polainas brancas, salta sobre as teclas. Desta vez entra no site do jornal que eu acabava de ler. Rapidamente, na tela, numa página de uma edição do início de 1964, a manchete: “Ouro de Moscou financia Ligas Camponesas”. Antes que me detivesse na leitura do texto, o grilo desliga a máquina e desaparece.

Volto à correspondência recebida e abro o envelope, postado em Fortaleza, pelo Museu do Ceará. Um pequeno impresso sobre uma exposição naquele museu, que dá conta dos 80 anos do massacre dos camponeses em Caldeirão, na Serra do Araripe (CE). Lembrei-me de ter visitado, há pouco, a exposição. Excelente exposição. Excelente curadoria. São os poucos objetos encontrados com os camponeses do Caldeirão, e recolhidos pela repressão enquanto butim – agora reinvestidos de seu sentido e dignidade originais, e a transcrição de depoimentos de sobreviventes da chacina, tomados anos depois. Além disto, páginas de jornais da época são reproduzidas ampliadas – a versão da mídia, a versão do latifúndio: em nome da civilização, da ciência, da ordem e do progresso, era preciso impedir uma nova Canudos.

Agora sou eu quem liga o computador. A criatura de casaca, cartola e polainas está aqui, pousada sobre meu ombro, a vigiar o que escrevo. Começo:

Há 500 anos, quando aqui, em Pindorama, chegaram os europeus e o mercantilismo (o ancestral do neoliberalismo), estabeleceu-se a imagem destas terras como a encarnação do Eldorado.
Há dez anos, em pleno apogeu do neoliberalismo, a imagem se revelou completa: Eldorado dos Carajás.

O Brasil é isto.

E sempre foi isto: o império dos monopólios das elites. Monopólio econômico, monopólio político e monopólio ideológico das elites.

Monopólio das terras e das comunicações.
Gêmeos siameses, ao monopólio das capitanias hereditárias correspondeu o monopólio da coroa portuguesa sobre o direito de impressão e publicação. Ao monopólio da Aracruz (e outros) corresponderá a era da TV digital.

Mas o Brasil não é apenas isto. O Brasil é também a atual ofensiva dos camponeses que começou no dia 17 passado, quando se completaram 10 anos do massacre de Eldorado dos Carajás, onde foram assassinados a tiros 21 sem terra (19 morreram no local e dois, em seguida, no hospital), e em protesto contra a impunidade dos autores da chacina.
O Brasil é também a resistência e atual ofensiva dos camponeses, que é justa e legítima.
 


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