V
de vingança: quadrinhos sublimes e anarquismo grosseiro
Uma das maiores obras-primas em quadrinhos chegou ao cinema. Alan Moore, seu autor, não gostou. Ele tem alguma razão. A versão em filme vulgarizou a estória, apesar de continuar muito boa. Comum a ambas é a visão grosseira de anarquismo. Por Sérgio Domingues, abril de 2006
No entanto, tanto o cenário do filme, como o da HQ, mostram uma Inglaterra dominada pelo fascismo. Não faltam, inclusive, campos de concentração e fuzilamentos de comunistas e homossexuais. Numa situação dessas, reações como a de “V” talvez não fossem inteiramente justificadas, mas estão longe de corresponder aos recentes atentados nos Estados Unidos e Europa. Polêmica mais aproveitável talvez seja a do autor da obra em quadrinhos, Alan Moore, com o diretor do filme. Moore declarou que o roteiro do filme “é um lixo”. Vejamos. A história em quadrinhos foi lançada no final dos anos 1980. Eram os tempos de Margareth Thatcher. Não que a Inglaterra viva dias muito melhores, hoje. Mas, naquele momento já começava a ficar claro os terríveis efeitos do neoliberalismo implantado pela “dama de ferro”. Aos ataques econômicos correspondia uma onda de conservadorismo. De culto ao individualismo, à competição, desprezo pela solidariedade e por tudo o que não se enquadrasse nos padrões dominantes. A estória escrita por Moore refletia esse clima. Além da enorme repressão e clima de delação, a vida dos governantes era retratada em detalhe. Um deles era sádico e alcoólatra. Só não batia mais em sua mulher porque ela apreciava as sessões de pancada. Outro era submisso a uma mulher dominadora, infiel e cruel. O locutor oficial colecionava bonecas. O bispo encomendava garotinhas para suas sessões de pedofilia. Aquele que viria a ser o grande rival de “V” era viciado em drogas. O próprio “Grande Líder” mantinha um caso tórrido de paixão por seu computador. Todo esse quadro foi desenhado por David Lloyd de maneira coerente. Traços sombrios, cores aguadas e personagens com os rostos sempre preocupados e infelizes transmitem melancolia e perversão. O roteiro do filme simplifica muito tudo isso, retirando personagens de cena e tornando os restantes menos interessantes. E a versão cinematográfica não consegue reproduzir de maneira convincente a ambientação visual que Lloyd criou. As próprias ações de “V” perdem radicalidade. No filme, o terrorista estabelece um prazo de um ano para destruir as casas do parlamento. Na HQ, estas são as primeiras a serem destruídas. Mais tarde, seria a vez dos edifícios dos meios de comunicação, propaganda e vigilância. No final, um trem subterrâneo cheio de bombas explode a residência oficial do primeiro-ministro, na rua Downing. Somente aí, a população resolve iniciar uma revolta contra o governo fascista. Outro ponto negativo são os exageros nas cenas de ação. Nos quadrinhos, “V” é cruel e violento com seus inimigos. Mas, no filme, as cenas de luta repetem o vício dos criadores de “Matrix”. São enormes e exageradas. A mais bizarra delas é a do confronto final entre “V” e as forças de segurança. A ditadura esclarecida de Bakunin Mas o que é comum às duas produções é uma espécie de caricatura do anarquismo. O símbolo de “V” parece a inversão da famosa marca anarquista, com seu “A” dentro de um círculo. O uso de bombas, por sua vez, faz parte de uma tradição de determinado tipo de anarquismo, que está longe de ser a única. Ações de terrorismo contra governantes, por mais fascistas que sejam, dificilmente têm eficiência. Mais isolam do que aproximam a grande maioria da população da causa pela qual se luta. Afinal, as pessoas não são carneiros que aguardam estupidamente a troca do pastor que os manobra. Essa idéia é bastante recorrente na obra de Bakunin, por exemplo. O famoso anarquista russo achava que o povo não merecia confiança porque estava mergulhado em sua ignorância milenar. Por isso, após tomar o poder, os anarquistas deveriam estabelecer uma ditadura de alguns indivíduos esclarecidos. Estes passariam, então, a educar o povo para prepará-lo para governar a si mesmo. E ainda tem gente que acha que Marx é que era autoritário. Mas, antes disso, durante a luta pela tomada do poder, a coisa era pior. Bakunin e seus seguidores achavam que nem todos deveriam ficar a par dos planos de seus dirigentes. Daí, a prática de criar grupos secretos dentro das organizações populares. Eram conspirações dentro de conspirações. No filme e na HQ essas idéias aparecem quando “V” simula a prisão de Evey e a tortura para testar sua firmeza. No gibi, quando “V” liberta a garota e revela a fraude, ela protesta. Mas ela o faz dizendo que já havia se acostumado com a vida na prisão. O terrorista responde que é assim que as pessoas vivem. Estão acostumadas com a prisão que lhes foi imposta. Precisam de alguém que as liberte, nem que seja através de tratamento violento. É aquela estranha idéia de que os seres humanos precisam ser libertados “mesmo contra sua vontade”. Felizmente, nem todos os anarquistas pensam assim. A prova é a determinação com que muitos deles se dedicam à militância cultural e educacional. Procuram desmontar os valores conservadores com que a burguesia alimenta diariamente a população. Lutam pela liberdade ao lado das maiorias e não apesar delas. Na verdade, tanto o terrorismo, como o desprezo pelo povo formam um beco sem saída para quem luta pelo fim da exploração e pela liberdade. E se isso é verdade em regimes democráticos, com eleições e liberdades básicas, é ainda mais certo em se tratando de ditaduras. As lutas sob regimes totalitários serão quase sempre de resistência. Muito dificilmente, serão de ataque e vitória sobre o inimigo. Não se trata de coragem ou determinação. Trata-se de condições de falar com a maioria da população e dos trabalhadores. De mobilizar esses setores para o combate. Sob ditadura, esse diálogo está fechado. Nenhuma atitude isolada ou minoritária consegue convencer a classe trabalhadora a agir abertamente contra seu inimigo de classe. Ela sabe que as condições são muito adversas. Só a mais ampla democracia pode melhorar suas chances. O final
de “V” é o contrário disso, no filme e na HQ. É bonito.
Mas, parece mais algo messiânico do que político. De qualquer
maneira, o filme vale ser visto. E a maravilhosa obra de Moore deve ser
lida e relida. Afinal, não é à toa que Moore tenha
batizado seu personagem de “Vingança” e não de “Justiça”.
Não é uma obra política. É estética.
E deve ter despertado a sensibilidade de muitos leitores para as questões
políticas e sociais.
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