A periferia como centro nas manipulações da Globo
De repente a periferia, seus problemas e cotidiano ganharam espaço na programação da Globo. Primeiro, foi o documentário “Falcão”, exibido no “Fantástico”. Depois, o tema passou a freqüentar o noticiário e a programação global. Agora, ganhou até um programa mensal com Regina Casé. Por Sérgio Domingues, abril de 2006


Como era de se esperar a exibição do documentário "Falcão - Meninos do Tráfico" no "Fantástico" em 19/03/2006 está provocando muita polêmica. A produção é do rapper MV Bill e do empresário Celso Athayde. Milhões de telespectadores viram mais de perto a vida de crianças que trabalham para o tráfico de drogas. Ficaram assustados ao saber que antes que se tornem adultos, a grande maioria deles será morta no desempenho de suas funções ilegais e perigosas. A prova é que dos 17 jovens entrevistados pelo documentário, apenas um sobreviveu.

Além do costumeiro debate sobre as razões e meios de evitar que esses jovens vivam tão mal e morram cedo, o que muito olham com desconfiança é o fato de um dos programas de maior audiência da tevê brasileira ter dedicado quase uma hora ao tema. Afinal, estamos falando da Rede Globo, cuja fama é a da simplificação da realidade social e da distorção sobre os males que atingem as camadas mais pobres da população.

Uma primeira conclusão poderia ser a de que, independente das intenções dos produtores do documentário, a exibição da vida triste e desesperançada dos meninos seria uma forma disfarçada de justificar a utilização das forças do Exército nos morros e periferias das grandes cidades. Mas, há quem diga que, talvez, o efeito seja o de mostrar que a força física pode pouco em uma situação como essas. Haveria, então, uma conscientização de que garotos precisam de família estruturadas, escolas, lazer, informação, cultura, esporte etc. Pode ser. E pode ser também que este seja mais um exemplo da maneira sofisticada com que a Globo vem abordando problemas sociais, mesmo que continue fazê-lo a partir de um olhar conservador. Afinal, onde é que estão, não apenas os traficantes, mas também a clientela desse negócio que é rentável na produção, mas também caro no consumo? A não ser que os depoimentos de alguns astros da Globo sejam uma forma disfarçada de fazer representar o lado consumidor da transação. Onde está a ação do Estado que é presente na repressão indiscriminada e na corrupção, mas omissa quanto a investimentos sociais?

É preciso assistir à versão que vai ao cinema. Mas, mesmo que seja a mesma, o fato é que pode ter sido escolhida pela Globo, exatamente porque capricha no tom emotivo e revoltante, mas pouco explica sobre as engrenagens dessa máquina de moer crianças. Um mecanismo que está longe de funcionar apenas nos morros e subúrbios e tem seu motor principal nos palácios e mansões dos bairros ricos. Ao contrário de fazer isso, as atrações da Globo vêm tratando o documentário em um tom quase filantrópico. E a caricatura mais grotesca foi o presente que o Programa do Faustão do dia 26/03 deu ao único sobrevivente dentre aqueles que participaram da produção. O garoto sonhava ser palhaço. Agora, seu sonho pode virar realidade graças ao ator Marcos Frota e ao dono de circo Beto Carreiro, que lhe ofereceram um curso e um emprego.

Central da Periferia

A iniciativa da Globo junto à MV Bill parece fazer parte de uma estratégia mais geral. Um novo programa mensal pode ser mais um elemento dessa estratégia. Trata-se de “Central da Periferia”. Apresentado por Regina Casé, o programa foi ao ar pela primeira vez no dia 8/04, às 16:45h. Segundo a página eletrônica da Globo, o programa pretende “apresentar na tela um pouco da arte, da cultura e do engajamento social das populações destas regiões”.

Criado pelo talento de Regina Casé, Hermano Vianna e Guel Arraes, o programa só poderia ter um formato muito interessante. A primeira edição foi gravada no Morro da Conceição, no Recife, Pernambuco. Casé apresentou a atração em forma de programa de auditório. Mas, também fez gravações com adultos e crianças da maneira habilidosa e simpática de sempre, sabendo brincar sem ofender. O objetivo seria mostrar como o povo da periferia faz coisas muito boas e diversificadas. E, como isso é verdade, não faltou matéria-prima. Principalmente, musical. O repertório foi do Hip-Hop ao Mangue-Beat, passando por músicas bregas no estilo da banda “Calypso”.

Além disso, fez denúncias. Algumas delas, mais elaboradas, como o momento em que denunciou a violência contra as mulheres. Outras, mais apelativas. Foi o caso do encontro musical entre os integrantes do grupo Hip-Hop “Faces do Subúrbio” e a banda da Polícia Militar. Antes, o grupo de rappers só havia tido contato com a polícia da pior maneira possível. Regina Casé gabou-se de apresentar o programa que os uniu. Como se sabe, a parte musical das polícias militares está longe de representar os batalhões que são utilizados no processo de criminalização da pobreza nas grandes cidades. Mas, Casé teve o cuidado de dizer que o povo das periferias sofre muito com as ações policiais.

Mas as contradições dessa exposição da periferia na tevê são grandes. Numa das chamadas de divulgação de “Central”, sua apresentadora aparece rodeada de crianças pobres, quase todas negras. Pergunta a elas se já haviam aparecido na tevê. A resposta em coro foi “não”. Volta a perguntar se gostariam de ter essa chance. A resposta, obviamente, foi “sim”. Ela, então, olha para o público e diz algo como: “Se você quer ver essas crianças na tevê sem que precise acontecer algo de ruim com elas, assista ‘Central da Periferia’...”. Uma clara referência a “Falcões”.

A pergunta que realmente importa é por que crianças pobres e negras precisariam estar colocadas diante de apenas duas alternativas. Ou seja, aparecer na tevê como vítimas ou como estrelas. E não apenas como detentoras do legítimo e óbvio direito à escola, saúde, lazer, cultura, informação. A resposta lógica tem a ver com o fato de que a Globo é uma emissora de tevê e não um órgão governamental ou coisa parecida. Mas, a resposta também pode ter a ver com o fato de que a Globo colabora para que o que há de óbvio naqueles direitos desapareça diante da possibilidade de festejar a periferia. Porque é isso que a atração da Globo parece fazer. Festejar a condição de ser favelado, suburbano, periférico. Em outra das chamadas do programa, Regina afirma que a periferia é maioria. É nela que acontecem as coisas. Ela é o verdadeiro centro.

Isso é meia-verdade. Em primeiro lugar, a mensagem global vem carregada de carga positiva. Mas, morar na periferia é conviver com a violência, o desrespeito, péssima qualidade de vida, todo tipo de carência. Não é só isso, claro, mas é muito disso. Em segundo lugar, muito da cultura, principalmente musical, da periferia reproduz o machismo, a perseguição a homossexuais e até o racismo. Afinal, não é raro que as cantoras que fazem sucesso devam muito disso ao fato de rebolar seus traseiros e pintarem os cabelos de loiro. Se a periferia tem vida própria, o centro de seu mundo é aquele dominado por valores conservadores. Valores que chegam a dezenas de milhões de pessoas pobres no Brasil todo através da grande mídia, com a Globo na liderança.

De qualquer maneira, a Globo não dá ponto sem nó. Não é o talento, ou as intenções, de MV Bill ou dos criadores de “Central da Periferia” que estão exatamente em discussão. É mais a forma como seu trabalho está sendo utilizado pela emissora.

Antes, nos tempos da ditadura, a Globo omitia e escondia. Ajudava o trabalho da censura. Hoje, há liberdade para fazer críticas, mas somente se capacitam para o debate os elementos que passam pelas imagens e sons das emissoras. Parece um seqüestro da possibilidade de debater e buscar soluções. O debate entre as comunidades, lideranças sociais, estudiosos, autoridades acaba prisioneiro dos termos que foram pautados pelos aparelhos da grande mídia.
 


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