Berlusconi
vira vilão de cinema em véspera de eleição
"II Caimano", trabalho de Nanni Moretti que estréia hoje na Itália, ironiza premiê, que tenta se reeleger em abril. Por Peter Popham, do "Independent" em Roma, reproduzido na Folha de S. Paulo em 24/3/2006.
Na última e apocalíptica cena, após o veredicto dos juízes, o personagem do premiê diz a jornalistas reunidos do lado de fora do tribunal que seus partidários podem reagir "como quiserem" à decisão da corte. Bombas incendiárias são detonadas na escadaria do tribunal. Silvio Berlusconi é "Il Caimano" (O jacaré), título do novo filme do diretor italiano Nanni Moretti, que, em 2001, tornou-se o primeiro italiano em 23 anos a ganhar a Palma de Ouro do Festival de Cannes, com um filme intenso sobre uma tragédia familiar, "O Quarto do Filho". Em 1994 ele tinha recebido o prêmio de direção em Cannes pelo autobiográfico "Caro Diário". Em seu novo filme, não há nenhuma tentativa de disfarçar a figura do político e magnata da mídia que, na vida real, enfrentará uma eleição crucial nos próximos dias 9 e 10, sendo que continua a perder posição nas sondagens de intenção de voto. "De onde vem todo o dinheiro?" é o refrão de espanto e desconfiança ouvido no filme quando o magnata representado pelo ator Elio de Capitani, ainda na fase inicial de sua carreira, anuncia a construção de uma cidade ao lado de Milão, assume o controle da TV comercial da Itália e lança seu próprio partido político. Moretti é há mais de 30 anos um dos mais mordazes observadores da política italiana, além de ser visto como o cineasta italiano de maior destaque desde Federico Fellini. "Il Caimano" é o principal tema de conversa há semanas na Itália, apesar de, ou por causa de, quase nada se saber sobre o filme até poucos dias atrás, exceto que o tratamento a Berlusconi era hostil. O diretor não deu entrevistas e não divulgou imagens do filme. Lançado em meio a uma campanha eleitoral acirrada e cada vez mais marcada por conflitos, o filme foi cercado de um clima de antecipação intensa. No entanto, se a oposição italiana esperava um trabalho que inspirasse e animasse seus defensores, ela esperou em vão. Como todos os filmes de Moretti, "Il Caimano" é demasiado pessoal e idiossincrático para funcionar como propaganda política. O próprio Moretti, fazendo o papel dele mesmo, diz no filme: "É inútil fazer um filme sobre a história de Berlusconi", zombando da idéia de envolver-se em tal projeto. "Todo o mundo já sabe tudo, o que quer dizer que ele já ganhou. Nossos cérebros mudaram 30 anos atrás." E é verdade: cada detalhe da carreira de Berlusconi já foi vasculhado e tratado em dezenas de livros e milhares de artigos de imprensa, por todos os ângulos possíveis. Como suscitar indignação com uma história que, para os italianos, já é tão familiar quanto um conto de fadas? Moretti insere a história da vida do magnata numa narrativa feita de camadas densas. A idéia de fazer um filme sobre Berlusconi começa com uma diretora novata, Teresa, que convence um produtor que anda mal de sorte, Bruno, que essa pode ser a salvação de sua carreira. "O público espera por isso", ela insiste. "Não é possível que ninguém na Itália tenha conseguido fazer um filme sobre Berlusconi." Cineasta de esquerda engajado, mas de espírito independente, Moretti registra os meandros da política italiana desde os anos 1970. Berlusconi é seu alvo predileto desde a dramática entrada do magnata na arena política, em 1993. Em "Abril", Moretti, fazendo o papel dele mesmo, lamenta amargamente o fato de a esquerda não ter oposto resistência ao bilionário dominador. A pré-estréia
de "II Caimano" foi saudada com hostilidade mordaz pela direita. "Pelo
que ouvi", comentou Michele Bonatesta, líder da pós-fascista
Aliança Nacional, "trata-se de um filme feio. A seqüência
final não decepciona aqueles que vinham esperando por ela, já
que os regala com a quintessência da má-fé invejosa,
do ressentimento e do ódio a Berlusconi. É um filme que vai
valer muitos, muitos votos à centro-direita."
(Tradução de Clara Allain)
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