“Seqüestro dos direitos desses jovens continua em todo o país”
Por Gustavo Barreto, 4/4/2006


Causa satisfação a resposta de Celso Athayde e MV Bill à compreensível polêmica causada por episódio em que MV Bill teria visto três pessoas seqüestradas durante as filmagens do documentário “Falcão – Meninos do Tráfico” e se calado, o que poderia caracterizar crime de omissão de socorro. A informação sobre os seqüestrados consta do livro sobre o documentário, lançado na semana passada. O jornal O DIA estampou na primeira página da segunda (3/4) manchete com crítica pesada ao rapper. O Observatório da Imprensa reproduziu reportagem e resposta da dupla. O DIA: “Causou indignação entre autoridades e estudiosos de segurança pública a revelação de que documentaristas preferiram silenciar”.

O sensacionalismo do diário – distante da realidade que MV Bill e Celso conhecem muito melhor – foi rebatido por um esclarecimento público na própria segunda (3/4). Argumentaram que o caso foi resolvido sem a participação da polícia e as vítimas foram libertadas. “O desfecho feliz ocorreu, em parte por nossa pressão e pela intermediação seja da pessoa que atuava como nosso contato naquele estado, seja de companheiros seus e, em parte, por conta de conflitos internos do próprio grupo, que se desentendeu quanto ao ato que praticou e suas conseqüências depois que nos permitiram ver as pessoas seqüestradas”, afirmam Athayde e MV Bill.

Questão de responsabilidade

Eles ponderaram a questão lembrando a lei do silêncio, uma regra em várias comunidades e uma questão de bom senso em parte dos casos. Quem é morador de uma comunidade atingida pelo poder do tráfico sabe que a exposição de um simples fato pode provocar um assassinato em poucos dias. Tal como explica a dupla: “Em situações que envolvem a vida e a morte, é preciso tanta responsabilidade quanto nos relatos que as descrevem. Nosso compromisso sempre foi e continuará sendo com a vida e com os valores dos movimentos sociais em que nos engajamos”.

Os editores de O DIA deveriam ser mais honestos com a realidade da profissão, principalmente porque a conhecem muito bem. Que entrevistados da classe média e “especialistas” encastelados em suas instituições de ensino fiquem horrorizados com a “descaso com a vida humana” supostamente cometida por Bill, tudo bem. A classe dominante está no papel dela, nos bairros bem policiados e com escola para todos. Mas é angustiante ver jornalistas que lidam todos os dias com a questão da segurança pública omitirem que nem sempre podem agir como desejam.

Em pelo menos quatro oportunidades, eu mesmo – com apenas três anos de atuação no meio – tive de omitir um fato completamente. E por um motivo muito simples: uma comunidade é um lugar relativamente pequeno, onde todos se conhecem e pouca gente pode se manifestar. Em alguns casos, se você se manifesta oferecendo à imprensa informações preciosas, em pouco tempo o comando local do tráfico identificará o autor da denúncia. Perceba que, em alguns casos, não importa o número de pessoas envolvidas. Pode ter promotor, jornalistas, sociedade civil, o que for. O autor da denúncia será um morador, um alvo fácil. Uma pessoa que, assim como nos quatro casos de denunciantes que conheci, possui uma família e algumas ameaças de morte na conta.

O que os moralistas de plantão amplamente ouvidos por O DIA queriam era julgar, em vez de entender o que significa efetivamente “descaso com a vida humana”. Este descaso é a questão central desta polêmica. MV Bill e Celso Athayde, ao final do esclarecimento, chamam corretamente a atenção para o principal problema: “(...) é bom ressaltar que esse episódio foi resolvido, porém o seqüestro dos direitos desses jovens que o livro retrata continua em todo o país”.
 


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