Programas humorísticos entram na mira do Ministério Público
Respondendo à representação do movimento GLBTT, a procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do DF deve entrar com ação na Justiça contra o programa “Zorra Total”, da Rede Globo. Rede Gazeta já retirou Sérgio Mallandro do ar. Por Jonas Valente, na Agência Carta Maior, 17/3/2006
 


Personagens com orientações sexuais diversas da heterossexualidade sempre estiveram presentes nos quadros de programas humorísticos veiculados na TV brasileira. Expostos ao ridículo e representados como figuras pitorescas e 'não-normais', a representação de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e transgêneros sempre foi opção de riso fácil nesses programas. Exemplos clássicos são o 'Seu Peru', do show global “Escolinhas do Professor Raimundo” e a lésbica “Tonhão”, interpretada pela atriz Cláudia Raia no programa 'TV Pirata'. 

Para que essas imagens distorcidas não se tornem eternas, o movimento GLBTT tem intensificado, nos últimos anos, a crítica às representações disseminadas pelas telas da TV. A crítica foi parar na Justiça. Iniciativa recente e de grande repercussão, a ação (leia quadro sobre o histórico no segmento final desta matéria) contra o programa “Tardes Quentes”, da Rede TV!, comandado pelo humorista João Kléber, levou à retirada da programação do ar e à veiculação de direito de resposta produzido pelas entidades signatárias da ação. Dando continuidade ao processo de fiscalização de conteúdos discriminatórios na televisão, o alvo do movimento GLBTT, desta vez, são os programas “Zorra Total”, da Rede Globo, e “Sérgio Mallandro”, da TV Gazeta. 

Frente a uma representação contra os dois shows feita pelo Movimento Transsexual de Brasília, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão do Distrito Federal (PRDC), órgão ligado ao Ministério Público, enviou recomendações às duas emissoras. No documento, o órgão sugeria a retirada do ar destes programas 'de cunho discriminatório' e que “como forma de compensar o dano moral causado a este grupo minoritário abra espaço na programação da emissora para o tratamento dos direitos GLBT, seja nos programas jornalísticos, seja nos programas de entrevistas e variedades, durante o período de três meses”. Na sua justificativa, a PRDC alega que os dois programas apresentam conteúdo que “incita o público a alimentar ódio e desprezo à comunidade GLBT e provoca, como conseqüência de seu teor homofóbico, agressões verbais, físicas e violência contra este segmento populacional”. 

Em resposta, a Fundação Cásper Líbero, responsável pela TV Gazeta, informou que a empresa produtora do programa do Sérgio Mallandro foi notificada e ainda determinou "veto artístico" a qualquer programa de cunho discriminatório. Com isso, foram retirados do ar dois programas de Sérgio Mallandro - tanto o que leva o seu nome como o “Casa dos Desesperados”. A fundação também se colocou aberta a receber a comunidade GLBTT sempre "que houver oportunidade de discutir a questão". Já a Rede Globo classificou a avaliação da Procuradoria como “infundada”, e utilizou suas ações “sociais” para justificar a ausência de intenção e conteúdo discriminatório nos programas da emissora. 

“A TV Globo reflete sua preocupação com seu papel social inserindo em sua grade de programação mensagens que visam levar ao público toda a difícil realidade brasileira para que, juntos, possamos construir um país melhor. Ante às campanhas promovidas pela Rede Globo contra a discriminação e a violência não há como pairar dúvidas quanto a sua postura de repúdio a todo e qualquer tipo de discriminação”, discorre a rede em resposta encaminhada à PRDC. A reação global soou como anúncio de guerra para os movimentos autores da representação. 

“A Globo acha que, por ser a maior rede de televisão no país, pode dizer o que quiser a qualquer hora sobre qualquer um mesmo que seja ofendendo, discriminando e incitando ao ódio e à violência”, critica Andrea Stefanie, do movimento transsexual de Brasília. “O poder de comunicação que a televisão tem hoje tem de ser usado com um pouco mais de critério e não é por que em algum momento há algum tipo de trabalho com finalidade social que isso legitima um discurso opressivo, que fomenta a homofobia e a violência”, completa Luana Ferreira, da Coturno de Vênus – Associação Lésbica Feminista de Brasília.

Por conta da resposta, as entidades e a Procuradoria decidiram ajuizar ação civil pública contra a Rede Globo. Será pedido à emissora que retire do ar os conteúdos discriminatórios e que seja exibido durante um determinado período de tempo programas que promovam o tema da diversidade sexual no mesmo horário do 'Zorra Total'. Já a TV Gazeta, por ter retirado o programa do Sérgio Mallandro do ar e por manifestar abertura para o movimento GLBTT, não será acionada na Justiça, mas procurada pelas organizações para que veicule, da mesma forma que a Rede Globo, conteúdos audiovisuais durante determinado tempo que reparem as mensagens discriminatórias e promovam o direito à livre expressão sexual. 

MÍDIA PRECONCEITUOSA
Na avaliação das lideranças, o episódio é mais um da luta contra a discriminação por identidade sexual no Brasil e envolve um importante instrumento de difusão de valores: a mídia. Para Cláudio Nascimento, da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), a mídia não vem acompanhando o processo, ainda lento, de conquista de direitos dessa parcela da população. “Apesar dos avanços em visibilidade positiva da temática homossexual-bissexual, como podemos verificar na atuação de parte de setores do jornalismo, constata-se ainda, no entanto, constantes práticas e abordagens discriminatórias contra GLBT no cenário de diversos programas da mídia brasileira”. 

Na avaliação de Nascimento, um dos principais espaços de veiculação dessas mensagens tem sido os programas humorísticos. “Diversos programas de humor têm reforçado preconceitos, estigmas, estereótipos e discriminação. A idéia de homossexualidade é associada à doença, desvio, pecado, à perspectiva de marginalidade e crime”. A piada, acrescenta Andréa, pode ser considerada uma expressão cultural legítima e inocente, desde que não atinja ninguém e não incite ao ódio e à violência – critérios esses que, segundo ela, não estão sendo respeitados pelos programas nominalmente citados. Para ela, o retrato satirizado da realidade brasileira deve tratar de temas polêmicos, mas não pode reproduzir posturas opressoras e discriminatórias. “A televisão tem papel educativo. Como ela é uma concessão pública, outorgada pelo governo, ela deve veicular conteúdo educativo sempre”, defende. 

Na opinião de Nascimento, a liberdade de expressão dos meios de comunicação não pode ser usada de forma exagerada e sem critérios. “A Constituição Federal assegura o direito à liberdade das produções culturais nos seus diversos campos, um valor conquistado duramente na sociedade brasileira. Mas esse valor, para ser efetivado, deve estar conjugado com o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana”. Ele argumenta que estes abusos são graves, pois contribuem de forma decisiva para a manutenção de uma cultura homofóbica na sociedade brasileira. 

Segundo dados da pesquisa "Política, Direitos, Violência e Homossexualidade", realizada pelo Grupo Arco-íris, pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e pela Universidade Cândido Mendes, 64% dos entrevistados relataram já ter sofrido algum tipo de xingamento, humilhação, constrangimento e agressão por causa de sua identidade sexual. O problema não é só da violência psicológica, mas física. Dados do Grupo Gay da Bahia denunciam que, a cada dois dias, um homossexual é morto no Brasil. Para Andrea, é possível e necessário mudar este quadro. “Se a gente mostrar para as pessoas que dá para ser diferente, sem discriminar ninguém seja por cor, etnia, opção sexual ou por gênero, nós vamos crescer em direitos humanos e promover a prática fundamental para uma sociedade tolerante e democrática: respeito”.

HISTÓRICO
O questionamento das organizações GLBTT de Brasília contra programas humorísticos que veiculam quadros discriminatórios é mais um capítulo de um processo maior iniciado pela retirada do programa do apresentador João Kléber do ar, por parte da Rede TV!, no final do ano passado. O grupo empresarial também teve de pagar uma multa de R$ 400 mil ao Fundo de Direitos Difusos do Governo Federal e transmitiu, em rede aberta durante seis semanas, conteúdo produzido pelas entidades signatárias da ação. O programa “Direitos de Resposta” abordou a temática dos direitos humanos por uma hora diária, situando os obstáculos e avanços na realização dos mais diversos direitos, desde a segurança pública até a identidade sexual.

Segundo Michelle Prazeres, do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, uma das entidades que assinou a ação civil pública movida contra o "Tardes Quentes", o episódio ajudou a colocar na pauta a necessidade de uma ação mais pró-ativa da população para com os abusos da mídia. 

“A importância do programa e do processo foi dar uma grande visibilidade e mais força a este movimento, trazendo mais gente pra roda, contribuindo para esta ‘cultura de controle público da mídia’, que não se confunde com censura. Para além da ocupação inédita de uma TV privada com debates específicos, o ‘Direitos de Resposta’ levou para a tela (e trouxe para a sociedade) este tema do controle social de um bem público - concedido e não doado ou comprado, ao contrário do que as pessoas pensam - e que é usado hoje para defender interesses privados”. 
 


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