Ponto Inicial: Crítica ao fatalismo de Woody Allen
Por Marcos Arruda, março de 2006


O filme de Woody Allen é muito bom cinema; mas é também um filme alienador pelo seu fatalismo. História de suspense, muito bem construída, que mantém a atenção do espectador pendurada no fio da narrativa. Utiliza com argúcia grandes planos das faces dos personagens para explorar com minúcia seus sentimentos. O enredo é original e a conclusão do filme é tão inesperada quanto a de uma boa piada. Mas não é piada nenhuma, ao contrário.

No Brasil, país da impunidade, este filme cai como uma luva para justificar que grandes criminosos de colarinho branco ou gravata borboleta por um mero golpe de sorte saiam impunes das suas tramóias, tão custosas para os fundos públicos e para a ética democrática. No país da riqueza super-concentrada, o filme reforça a crença de que a ilusão da riqueza material a todos seduz e a todos corrompe.

O que interessa explorar aqui é a filosofia veiculada pelo filme deste cineasta existencialista de Nova York. É a mesma filosofia do biólogo francês Jacques Monot, para quem a terra é uma nave perdida no Cosmos navegando ao sabor do acaso. Woody interpreta a vida humana como uma sequência de acasos, e são eles que comandam os acontecimentos e os destinos. Os gregos antigos davam ao acaso a personalidade de deuses, e colocavam o Olimpo como o cenário em que as interações entre os deuses se desdobravam, sempre baseadas em paixões e preferências pessoais, moldando assim os destinos humanos. Os dramas e as tragédias vividas pelos humanos eram como que reflexos dos conflitos entre os deuses.

É de chamar a atenção a quase total ausência da questão da consciência e da liberdade na filosofia de Woody Allen. Em nenhum momento, exceto no discurso desesperado de Lona Rice, é levantada a responsabilidade de cada um pelas decisões a tomar. O filme é, na verdade, uma tessitura de tomadas de decisões. Mas elas passam despercebidas, dado que Woody focaliza nossa atenção, do começo ao fim do filme, no tema do acaso, da sorte ou do azar (hasard, em francês, quer dizer acaso, e não má sorte). A influência do fatalismo grego é evidente no filme, inclusive no discurso do anti-herói, que cita Sófocles para justificar suas ações: já que o acaso é que comanda nossas vidas, o melhor seria nem ter nascido. Mas já que nascemos, temos que nos conformar com a nossa “sorte”: os que ganham são os bons pois o acaso os premiou; os que perdem são os maus, ou pelo menos os “azarados”.

Woody constrói com sensibilidade o drama que vive o anti-herói na sua intimidade, nos momentos mais críticos. Ele vive momentos de desespero, de vergonha, de angústia extrema. Um olhar mais profundo verá que ele próprio está agonizando. Ao eleger as decisões que tomou, ele na verdade escolheu matar seu próprio Self, seu eu-sou profundo. O egocentrismo que comanda seus sentimentos mais profundos o leva a tudo justificar pelo fim maior que o move – a vida de benesses da alta elite que “o acaso” lhe presenteou. Nos seus breves, intensos momentos de desespero, ele está, na realidade, fazendo o luto de si próprio. Quem vai continuar vivendo é apenas um fantasma dele próprio. É o que fica evidente nas cenas que o colocam impassível, insensível, totalmente distante diante daquela manifestação de nova vida da qual ele é autor direto, embora não por amor ou por intencionalidade co-criadora.

Enfim, Woody se mostra incapaz de examinar ou antecipar a sequência dos sentimentos do anti-herói. O tombo do anel para o lado de cá pôs de fato um ponto final na tragédia? Para Woody, o filme termina no que considero o ponto inicial de um outro filme: a estória de um morto-vivo, cercado de segurança e bens materiais, porém aprisionado à culpa resultante de sua escravidão ao binômio desejo-medo. Do ponto de vista energético, o anti-herói não é um ganhador da loteria da vida, mas sim um perdedor na luta pela conquista de si próprio; sua vida é a resultante de escolhas guiadas por fatores que pertencem à dimensão infra-humana do seu ser. Ele é um escravo do seu próprio Eu. Ele é a negação da liberdade.

Com isto não desejo passar a impressão de que estou fazendo um julgamento da pessoa do anti-herói. Ele encarna apenas os valores da cultura dominante, a cultura do individualismo extremo, do eu-sem-nós, do cada-um-por-si-e-deus-por-mim. Woody Allen contrasta com outros cineastas contemporâneos (Ken Loach, Walter Salles Jr., Tizuka Yamazaki), que vêm no altruísmo, na cooperação e na solidariedade um sentido superior para a vida humana. Há outra maneira de conceber a vida humana. Ela seria a resultante de dois fatores que convivem em tensão dialética, numa dança que faz de cada um deles um elemento inseparável do par unificador: nossa liberdade de tomar decisões segundo o tipo e o grau de desenvolvimento da consciência que temos de nós próprios, do Outro e do Mundo; e o que a vida nos traz ao longo da caminhada. A cada esquina da vida devemos ouvir, sempre e de novo, a fala da sábia Raposa ao Pequeno Príncipe: “Tu te tornas para sempre responsável por aquele que cativas”.
 
 


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