O fim da notícia
Por Pablo Uchoa, de Paris, no 'Observatório da imprensa', março de 2006


Na prateleira, parece um livrinho despretensioso. A edição brasileira, então, cabe no bolso do paletó. Mas quando lançado aqui na França, em 1997, Os novos cães de guarda foi motor de muita polêmica. Uma edição atualizada, recém-lançada, atesta o vigor da obra, que de saída vendeu 200 mil exemplares – sem que seu autor, o jornalista Serge Halimi, recebesse uma só menção na imprensa. Nem mesmo no Le Monde Diplomatique, o jornal para o qual Halimi trabalhava na época.

A mídia francesa não gostou da verdade simples, mas incômoda, que o livro contém: se existe no mundo um sistema econômico que garanta que todos são iguais, mas alguns mais iguais que outros, a imprensa é guardiã dele. "Dominada por um jornalismo de reverência, por grupos industriais e financeiros, por um pensamento de mercado e por redes de conveniência", escreve Halimi, "a imprensa francesa se diz contrapoder, mas é na verdade o novo cão de guarda de nosso sistema econômico."

Há muito de absoluto na verdade propagada por Halimi. A relação inescrupulosa de alguns setores da imprensa brasileira com o presidente venezuelano Hugo Chávez me convence cada vez mais disto. Matérias ruins, superficiais, sobre a Venezuela e seu processo político nunca foram novidade – pelo contrário, a má vontade explícita dos grandes grupos de comunicação em relação a Chávez sempre foi regra.

Exemplo a recusar

O problema é que a pendenga está virando coisa séria. Redações importantes acenderam o alarme vermelho para o presidente venezuelano. Nesses casos, nada mais é publicado sobre o país sem a aprovação prévia das instâncias superiores. Isto significa que, para alguns veículos brasileiros, nada que acontece na Venezuela é notícia. Tudo é opinião.

Os profissionais do mercado sabem que redações são estas. Já o leitor comum precisa apenas passar os olhos por uma banca de revista e notar o tom cada vez mais belicoso, confrontativo, afrontador, que as matérias têm destilado a Chávez.

Quem já teve a curiosidade de acessar algum jornal venezuelano pela internet sabe que, ali, a imprensa há muito tempo deixou de dar notícia e virou partido de oposição. A imprensa venezuelana de oposição (desculpem o pleonasmo) foi pilar do golpe de Estado que tirou do poder o presidente Chávez por 47 horas. Intentona que terminou cedo, condenada por unanimidade pelos países latino-americanos, porque o discurso que se lia nas páginas dos jornais não correspondia ao desejo da população que protestava nas ruas.

Tristemente, uma parte de nossos jornalistas torce o nariz para tudo isto. Mas nossa imprensa, mais diversificada e democrática, não tem razão nenhuma para inspirar-se na venezuelana. Recusar este mau exemplo é obrigação dos colegas minimamente críticos. Em 1989, a má vontade acrítica da categoria tolerou um dos episódios mais vergonhosos da história da imprensa brasileira, a manipulação que culminou com a eleição de Fernando Collor de Mello. Desejamos de fato involuir?

Raças diferentes

Desta vez, não existe sequer um Leonel Brizola para ameaçar nacionalizar os meios de comunicação. Pelo contrário, Chávez é aliado do Brasil (e do nosso capitalismo) e sempre foi simpático à nossa imprensa. Qualquer um que pise na Venezuela verá como os jornalistas estrangeiros são bem tratados no país, seja pelo governo ou pela população nas ruas. Dizem que a briga de Chávez com a imprensa local é oriunda dos ataques verbais do presidente aos meios venezuelanos – bobagem. A atual briga dos meios brasileiros com Chávez comprova que a imprensa, como guardiã de um sistema econômico que lhe beneficia, combate Chávez porque esta é sua natureza.

Que sistema é esse, as matérias raivosas não explicam. Uma vez que precisão conceitual nunca foi o forte do nosso jornalismo, esses setores da imprensa se contentam com latir para tudo e para todos, meio que a torto e a direito. O curioso é que não percebo o mesmo rancor em veículos como o New York Times ou a The Economist que, estando nos países ricos, talvez tivessem mais razão para identificar-se com este sistema econômico. Paradoxalmente, é mais fácil encontrar matérias equilibradas sobre a Venezuela nesses veículos do que nos nossos.

É que, mesmo no mundo dos cães, existem diferenças. Algumas raças são mais inteligentes que outras. Umas, mais astutas, sabem separar os alhos dos bugalhos. Outras, mais torpes, apenas babam e arreganham os dentes.
 


(*) Jornalista, autor do livro Venezuela: A encruzilhada de Hugo Chávez (Ed. Globo, 2003), menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos 2004; ex-produtor e editor da Globonews e de reportagens especiais do Jornal Nacional em São Paulo; mestrando em Ciência Política Latino-Americana no Institute for the Studies of the Americas, em Londres.

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